Texto do caderno MAIS!, da Folha de São Paulo
Presidente do Equador decreta fim do sistema neoliberal, Chávez promove o socialismo do século 21 e Morales diz que vai refundar seu país; o que propõem os novos líderes da esquerda da América Latina?
RAUL JUSTE LORES
Fotos de Jesus Cristo, Che Guevara, Simón Bolívar e Hugo Chávez estão na página "Fontes de Inspiração" da apresentação em PowerPoint que o vice-chanceler venezuelano, William Izarra, usa para explicar "O Socialismo do Século 21".
Há três anos o Centro de Formação Ideológica da Venezuela divulga o "socialismo bolivariano", anunciado como a principal meta do terceiro mandato do presidente venezuelano Hugo Chávez.
Mas o que têm em comum o ícone cristão, o guerrilheiro ateu, o aristocrata liberal que comandou a independência na América hispânica e o populista presidente venezuelano?O socialismo do século 21 tem alta elasticidade ideológica.
Chávez e seus discípulos, os presidentes da Bolívia, Evo Morales, do Equador, Rafael Correa, e da Nicarágua, Daniel Ortega, receberam com admiração e afeto o ultraconservador presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad -aquele que defende que o Holocausto jamais aconteceu.
Os quatro países que querem adotar o socialismo do século 21 têm em comum décadas de partidos corruptos, instabilidade e relações próximas com os EUA.
Desde que anunciou a nova versão do socialismo, Chávez não parou em Caracas e, entre viagem e viagem, não pôde dar mais detalhes sobre o que é a nova ideologia.Mas, além do antiamericanismo que une os cinco, e da vontade de combinar um aumento no preço do petróleo, que aproxima o venezuelano do iraniano, há comportamentos que podem explicar o que será essa nova esquerda. Há oito anos no poder, Chávez é o presidente mais longevo no cargo depois do cubano Fidel Castro.
Virou inimigo número um de George W. Bush nas Américas e ameaçou desapropriar terras e expulsar investidores estrangeiros.Mas, discretamente, até dezembro último, era um ótimo pagador e seguidor das metas do FMI e fornecia comportadamente todo o petróleo que os EUA queriam importar, responsável por 80% da balança comercial venezuelana.
"Comparado ao marxismo do século 20, Chávez era uma versão bem light, muito mais parecida ao velho populismo latino-americano, que faz negócios com grandes empresas e daí sustenta seu poder", descreve o professor de ciência política do Amherst College Javier Corrales, que estudou o governo chavista com uma bolsa da Fundação Fulbright.
As novidades do recém-iniciado terceiro mandato de Chávez são muitas. Ele anunciou que estatizará a maior telefônica do país e a maior empresa de energia elétrica. Vai cassar a concessão da rede de televisão privada mais antiga do país, que lhe faz oposição.
Governará por decreto nos próximos 18 meses, sem precisar passar leis pelo Congresso (onde 100% dos deputados são chavistas). Poderá assinar leis que mudem áreas como economia, transportes, energia, segurança jurídica, defesa e funcionalismo público. Aprovará a reeleição sem limite.E pretende, no futuro, substituir governos municipais por conselhos comunais, assembléias de bairro que receberão recursos do governo.
Com uma renda de US$ 55 bilhões em exportações de petróleo só em 2006 e um mandato até 2013, Chávez tem condições para exportar seu socialismo.Com (muito) menos dinheiro em caixa e um país em crise permanente, Evo Morales já tentou seguir algumas das receitas.
Convocou uma Assembléia Constituinte para criar uma nova Carta Magna e aprovar sua maioria parlamentar. E colocou seus movimentos sociais mais fiéis na rua para exigir a renúncia de governadores opositores que clamam por mais autonomia.Há sete dias no cargo, Rafael Correa, do Equador, já anunciou que quer uma nova Constituição, renegociar a dívida externa e contratos externos.
Neoliberalismo em baixa
Os quatro países que querem adotar o socialismo do século 21 têm em comum décadas de partidos corruptos no poder, instabilidade política ou econômica e, por muito tempo, relações muito próximas com os EUA que não renderam muitos dividendos.Os quatro também adotaram, nos anos 90, reformas de abertura econômica, que não levaram melhora significativa à maioria de suas populações.
"O neoliberalismo é reprovado por 80% dos latino-americanos", calcula o deputado chavista Juan Carlos Dugarte, idealizador do projeto que cria os conselhos comunais. "A Argentina esteve à beira da ruína, depois de uma privatização desenfreada, e só se salvou pelo nacionalismo do presidente Kirchner. "Mas vários dos países que elegeram a esquerda nos últimos anos não vivem as transformações radicais do socialismo bolivariano.
"Apesar dos ataques às privatizações e ao neoliberalismo, os governos de esquerda do Brasil, da Argentina e do Uruguai mantêm vários dos princípios da década do Consenso de Washington. No Chile, de governo de centro-esquerda, o liberalismo é até consenso", diz o venezuelano Moisés Naím, editor da revista "Foreign Policy", de Washington.No caso argentino, Kirchner é bem mais prudente com as contas públicas que o campeão do neoliberalismo dos anos 90, Carlos Menem, um gastador convicto.
"Para se eleger, você não pode defender privatizações ou abertura. Esses conceitos ficaram gastos porque foram usados por conservadores que jamais pensaram no povo", diz a economista chilena Marta Lagos, diretora da Fundação Latinobarómetro, que pesquisa opinião pública na região.
"Mas os latino-americanos, que realmente estão cansados de esperar por melhores condições de vida, também não querem mudanças radicais. Só países com muitos problemas optaram por radicalismos e por políticos "outsiders".
"Socialismo de papelBandeiras históricas da esquerda não têm recebido muita atenção nas medidas do socialismo bolivariano.Não houve uma reforma tributária progressiva, que taxasse os mais ricos e as grandes empresas, a fim de financiar serviços públicos de qualidade e melhorar a distribuição de renda - como na Europa.
Apesar de anunciada em 2003, a reforma agrária pouco avançou, com a desapropriação de só algumas fazendas grandes. Também a pauta de direitos civis não preocupa Chávez. Aborto, casamento homossexual ou descriminalização do consumo da maconha estão fora da agenda bolivariana.
O sandinista Daniel Ortega apoiou no ano passado a proibição do aborto, até em casos de estupro ou risco de morte da mãe, aprovada na Nicarágua.A presidente chilena Michelle Bachelet, agnóstica e mãe solteira, está em sintonia maior com a esquerda européia, apesar do liberalismo econômico.
"A negação de Bachelet ao luto oficial pela morte do ex-ditador Augusto Pinochet (não houve bandeira a meio-pau nas repartições públicas), suas medidas pela paridade entre os gêneros no governo e a prioridade para programas de educação e previdência a colocam como a presidente mais à esquerda da redemocratização chilena", diz o cientista político José Miguel Izquierdo, da Universidade Diego Portales, de Santiago.
Enquanto isso, Caracas ainda resume bem os resultados modestos dos oito anos do governo de Chávez. A capital venezuelana tem o mais alto índice de homicídios entre todas as capitais americanas e 70% da população mora em favelas ou construções irregulares. "A situação dos mais pobres pouco mudou. Ele não tem equipe. Chávez está desacreditando a esquerda. Muita foto, muito discurso, mas é um socialismo de papel", diz Marta Lagos.
Sem ainda ter revolucionado a Venezuela, Chávez parece mais interessado em "exportar" sua revolução. Ele comprou US$ 3,1 bilhões em títulos da dívida argentina, colabora com US$ 3 bilhões em petróleo para Cuba por ano e vendeu a preços vantajosos petróleo a prefeituras sandinistas, governadas pelo partido de Daniel Ortega, na Nicarágua.Pacotes generosos de cooperação espalham dinheiro venezuelano pela Bolívia e, a partir de agora, pelo Equador.
Acúmulo de poderQuanto às reformas que lhe dão superpoderes, Chávez segue uma trilha comum na região, onde direita e esquerda se confundem. Tanto Carlos Menem, na Argentina, quanto Alberto Fujimori, no Peru, também quiseram ter o máximo de instrumentos à mão para "transformar" seus países.Ambos não economizaram esforços (e verbas) para mudar leis, controlar poderes Legislativo e Judiciário, sindicatos e movimentos sociais.
"Em nenhum dos casos houve um projeto para se reforçar as instituições e a independência dos poderes", diz Corrales.Se o neoliberal Menem nomeou seu irmão para presidir o Senado e seu ex-sócio para a Corte Suprema, Chávez faz algo parecido: seu irmão mais velho é o novo ministro da Educação e o ex-presidente do Conselho Eleitoral até dezembro foi nomeado vice-presidente.
Se direita e esquerda compartilham velhos vícios, a boa notícia é que tem havido alternância no poder na América Latina. "Mas a democratização aumentou as demandas. Se a esquerda não oferecer progressos, também será substituída", diz Marta Lagos.
Se o socialismo do século 21 ainda precisa mostrar resultados, a ascensão da esquerda já teve efeitos imediatos na política regional. Até políticos conservadores, como os presidentes da Colômbia, Álvaro Uribe, e do México, Felipe Calderón (e mesmo seu antecessor, Vicente Fox), investem pesado em programas sociais, apesar de manter a "prudência fiscal".
Em tempos de ausência e indiferença dos EUA com a região, depois de décadas de intervencionismo americano justamente contra governos "socialistas", esquerda e direita estão à procura de fórmulas que terminem com a pobreza na região mais desigual do planeta.