“Acreano” foi uma mentira morfológica
escrita tantas vezes que acabou virando verdade.
De Aldo Nascimento
escrita tantas vezes que acabou virando verdade.
De Aldo Nascimento
Em 20 de março de 2009, em uma sala da Assembleia Legislativa do Acre, representantes da Academia Acreana de Letras, das Faculdades de Letras e de História da Universidade Federal do Acre, das Fundações Culturais Garibaldi Brasil e Elias Mansour, da Biblioteca Pública Estadual, do Sindicato dos Jornalistas, do governo do Estado, da Câmara dos Deputados e da Assembleia Legislativa do Acre reuniram-se para formalizar uma contestação contra a supressão de “acreano” no Acordo de Ortografia Simplificada entre Brasil e Portugal para a Lusofonia.
Uma reunião por causa de uma palavra. Em Antônio Houaiss e em Aurélio, habitam as palavras “acriano” e “acreano”. Se meu aluno quiser escrever “acriano” em sua redação, ele tem o apoio de dois dicionários embora “acreano” prevaleça nos jornais, nos documentos, na comunidade linguística local. Todos podem escrever “acreano”; porém, ao consultar Houaiss, Aurélio ou Celso Pedro Luft, meu aluno escreve “acriano”.
Se esses autores consagrados confirmam “acriano”, não importa se a maioria impõe a grafia “acreano”. Até 31 de dezembro de 2012, as duas grafias permanecerão; depois, somente “acriano”.
A professora-doutora Luísa Galvão Lessa, pessoa por quem tenho a mais sincera admiração, disse-me que, “em termos de linguagem, o uso consagra a forma”. Concordo, mas faço uma concessiva: embora o uso tenha consagrado a forma “acreano”, eu, diferente da comunidade linguística, posso escrever “acriano” por discordar da maioria.
Ora, a maioria não sabe o que Antônio Houaiss, Aurélio e Celso Pedro Luft sabem. Para mim, neste caso, não está em jogo “o uso que consagra a forma”, mas o saber de estudiosos renomados que não consagrou o uso “acriano”. Opto, portanto, não pelo uso que consagra a forma, mas opto pelo saber erudito de autores tão bem ignorado pela maioria.
Por que se registra arque-ano e não arqui-ano ? Bem, a palavra derivante é “Arqueu” e, por haver nela um ditongo tônico com base -e- (-eu), o -e- permanece no radical: “arque + ano”. Isso ocorre também quando a silaba tônica do derivante é -e, por exemplo, “Daomé”, por isso registramos “daome-ano”. Coreano ou coriano? Porque a lei morfológica que rege “Arqueu” e “Daomé” também reina em “Coreia”, escreve-se “coreano”.
Quem nasce em “Cabo Verde” é “cabo-verdeano” ou “cabo-verdiano”? Nesse caso, como o derivante “Cabo Verde” tem a sílaba tônica “ver-”, o -e- não permanece no radical da palavra derivada, havendo em seu lugar uma vogal de ligação: “cabo-verdiano”. Esse mesmo fenômeno ocorre com a palavra “Acre”. A sílaba tônica é “A-cre” e, dessa forma, por ser átono o -e- de “Acre”, ele não permanece no radical da palavra derivada, havendo a vogal de ligação -i- para acomodar o radical “Acr-” ao sufixo “-ano”: “acriano”.
O fenômeno morfológico que há em “acriano” é o mesmo que ocorre em “comtiano” (Comte), em “açoriano” (Açores), em “ciceroniano” (cicerone). No hino do Estado, entretanto, registrou-se “acreano”, o que para mim representa um erro, porque, por ser hino oficial, deveria prevalecer a forma clássica, erudita, ou seja, o uso vernáculo. Por se tratar de um texto poético que representa o ideal do Estado, a palavra tem o dever cívico de ser lapidada pelo saber erudito.
Divergindo de Francisco Mangabeira, autor da letra do Hino Acriano, o Acordo de Ortografia Simplificada, em sua Base V - Das vogais átonas -, levou em consideração “o sufixo misto de formação vernácula -iano”, ou seja, prevaleceu a etimologia (etimon: o verdadeiro). “Acreano” foi uma mentira morfológica escrita tantas vezes que acabou virando verdade. O uso [errado] consagrou a forma [errada].
Tantas instituições reunidas por causa de uma mentira morfológica, tantos preocupados com uma só palavra. Muito mais do que uma palavra isolada, essas instituições deveriam se reunir contra palavras erradas em redações escolares, contra um sistema público de língua portuguesa que permite o aluno de ensino médio escrever como se estivesse no início do ensino fundamental.
Mais: a Assembleia Legislativa deveria se pronunciar contra deputados que escrevem errado em seus blogues (sim, aportuguesei). O Sindicato dos Jornalistas deveria se colocar contra faculdades que formam alunos sem conhecimento elementar de um bom texto. O governo do Estado deveria corrigir assessores que publicam vergonhas gramaticais.
Lutar contra uma palavra é mais fácil.