sexta-feira, novembro 03, 2006

MachadO de aSSis

A mensagem na garrafa

Em "Por um Novo Machado de Assis", o crítico inglês John Gledson busca decifrar o sentido último das ficções do autor de "Dom Casmurro"

ADRIANO SCHWARTZESPECIAL PARA A FOLHA

Poucos críticos literários praticam seu ofício com tanta retidão quanto John Gledson, que está lançando "Por Um Novo Machado de Assis", uma coletânea de ensaios sobre o autor de "Dom Casmurro", tema principal de seus estudos há muitos anos. Isso fica claro quando se constata como ele valoriza e defende outros críticos de sua própria linhagem, sem, no entanto, deixar de fazer restrições ou apresentar discordâncias -e o exemplo maior aqui é Roberto Schwarz. Mas, principalmente, isso fica ainda mais claro pelo modo como discute os autores com os quais não se alinha.
Ele os nomeia e aceita com prazer e abertura o debate, sem em nenhum momento tentar desqualificar qualquer "oponente". Gledson não vê, inclusive, nenhum problema em afirmar que mesmo posições e pressupostos teóricos bastante incompatíveis com os dele podem até levar a conclusões próximas -e o exemplo evidente aqui é Abel Barros Baptista.
Intenção do autor Nos 14 textos reunidos no volume, o autor analisa contos, crônicas, a personagem Capitu, as relações entre literatura e história, leituras femininas e até faz "especulações sobre sexo e sexualidade" em Machado de Assis e Graciliano Ramos: cada abordagem reforça a percepção de que se trata de um pesquisador com profundo domínio de seu assunto.
Em vez, contudo, de discutir um ou mais ensaios, o que seria difícil por conta dos limites de espaço, gostaria de brevemente comentar uma idéia sempre defendida por John Gledson e que é aqui mais uma vez retomada -a questão da intenção do autor: "Como afirmei então [em "Impostura e Realismo'], eu era (e continuo sendo) um "intencionista declarado" no sentido (restrito) que "acredito ser uma parte essencial do papel do crítico revelar os significados que o escritor pretendia comunicar".".
Corajosa e contestável, tal posição, ainda que na prática seja assumida por muitas pessoas, raramente nos dias de hoje é defendida de modo público, uma vez que se aproxima da idéia do senso comum a respeito do texto artístico (qualquer professor se lembrará com facilidade das inúmeras vezes em que, depois de analisar em sala de aula um conto ou poema, ouviu, com variações, a pergunta: "Mas o autor quis realmente dizer isso?").
Questão rica e polêmica na história dos estudos literários, atualmente ela é pouco debatida. Como amostra do problema, pode-se tomar um exemplo extraído de "O Espelho". O protagonista da narrativa, a certa altura do enredo, recebe da tia o "privilégio" de ter em seu quarto um espelho, assim descrito: "Obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de d. João 6º".
Gledson se pergunta as razões de o escritor ter inserido o "pedigree" da peça no conto e conclui: "O Brasil de fato tornou-se um império independente sob a regência de d. Pedro 1º, filho de d. João, em 1822, mas esta era a primeira etapa do processo. Valendo-me da metáfora de Machado: pela primeira vez o país se viu no espelho (...). Não consigo imaginar nenhum outro motivo para a menção do pedigree".
Assim como o objeto refletia um borrão quando Jacobina nele se olhava, ele refletiria, figuradamente, o problema da "existência do Brasil como nação". Pode-se, é claro, argumentar assim. Será, contudo, que isso não implica forçar um pouco a interpretação? Será que o "pedigree" não está ali, de modo mais simplório, só para, por contraste, reforçar a boçalidade desse narrador (Jacobina pouco antes assumira a narração) que se julga tão importante? Ir além dos significados Pensando em termos mais genéricos, quando se fala em intenção, é legítimo especular qual é ela? Ou qual o seu propósito? Para dizer de outro jeito, incorporando a premissa: qual teria sido a intenção de Machado de Assis ao intencionalmente cifrar sua obra, em transformar seus contos e romances em uma espécie de mensagem na garrafa para críticos futuros?
Isso não seria mais ou menos o mesmo que diagnosticar uma doença grave, potencialmente fatal, escrever um relatório sobre ela e guardá-lo em uma gaveta trancada para ser lido décadas depois, quando o doente já há muito morreu e virou pó? Ninguém duvida de que existe, em certa medida, uma intenção autoral; talvez existam também "diagnósticos" e "relatórios", mas a obra de qualquer grande escritor necessariamente transcende a sua própria capacidade de compreendê-la, e a tarefa do crítico é ir além "dos significados que pretendia comunicar", como, certamente fazem, a despeito de suas "intenções", estes ensaios, cheios de percepções agudas e relevantes, de John Gledson.

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).POR UM NOVO MACHADO DE ASSISAutor: John Gledson Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500) Quanto: preço indefinido, 440 págs.