Quando conheci Josafá Batista, eu estava no Página 20, e alguns repórteres chamavam Josafá de "maluco", de "doido", pois era um cara que voava nas suas matérias. Alguns jornalistas acreanos são até hoje "focas", porque, quando o poder dá sardinha enlatada a eles, nossos repórteres batem palminhas e gritam alegres. Josafá nunca foi "animalzinho adestrado". Ele sempre foi acreano, rio-branquense. Josafá Batista é jornalista que possibilita uma entrevista que não assiste à minissérie Amazônia: de Galvez a Chico Mendes, da Globo.
A Amazônia real
Historiador diz que Galvez e Plácido eram mercenários
e que o Acre não foi “conquistado”: foi roubado da Bolívia
Se a narrativa da história do Acre contar com a versão boliviana, muito bem ocultada por mais de um século de “ladainhas sobre bravos heróis da floresta”, muita coisa terá que ser reescrita.
Para começar, o Acre foi sim “doado” ao Brasil em troca de um cavalo. E mais: o puro-sangue, um mimo estratégico do governo brasileiro ao ditador da Bolívia, Mariano Melgarejo, foi acompanhado de duas medalhas... de latão.
Se a narrativa da história do Acre contar com a versão boliviana, muito bem ocultada por mais de um século de “ladainhas sobre bravos heróis da floresta”, muita coisa terá que ser reescrita.
Para começar, o Acre foi sim “doado” ao Brasil em troca de um cavalo. E mais: o puro-sangue, um mimo estratégico do governo brasileiro ao ditador da Bolívia, Mariano Melgarejo, foi acompanhado de duas medalhas... de latão.
Os detalhes desse e de outros trechos nada gloriosos da famosa e misteriosa “Questão do Acre” são expostos com farta documentação por um historiador boliviano. Aos 84 anos, Hernán Messutti Rivera, professor de História da Universidad Mayor de San Andréas, em La Paz (Bolívia), é pioneiro na pesquisa e na documentação do conflito que gerou o Estado, onde, hoje, vivem todos os acreanos.
Autor do livro El Desmembramiento de La Bolivia, ainda sem tradução no Brasil, Rivera apresenta uma nova e polêmica versão: a de que Luís Galvez e Plácido de Castro eram mercenários, isto é, homens pagos pelo governo do Amazonas com um único objetivo: enfraquecer a Bolívia, recém-saída de uma derrota em uma guerra contra o Chile. Para o historiador, a ambição brasileira, justificada pela explosão do mercado da borracha, era só uma: la plata.
Confira os detalhes da entrevista exclusiva.
É verdade que o senhor é o primeiro, do lado boliviano, a estudar a famosa “Questão do Acre”?
Eu era pioneiro quando comecei há mais ou menos 30 anos. Escolhi esse tema porque aqui ainda não havia consenso sobre a guerra, apenas alguns relatos muito antigos dos eventos. Mas foram escritos pouco depois da revolução, são mais documentos da época do que propriamente livros. Mas os historiadores não estudavam esse tema, por isso o escolhi.
O senhor também consultou fontes brasileiras?
Sim, viajei em busca de documentos a Rio Branco, ao Rio de Janeiro, a Manaus e a Brasília. Fui inclusive até o Itamaraty em busca de documentos para pesquisar os detalhes sobre a guerra.
O senhor usa sempre a expressão “guerra” em vez de “revolução”, por quê?
Porque o exame cuidadoso dos fatos mostra que foi uma guerra. Quando o senhor fala em revolução, o senhor fala do povo lutando contra o seu próprio governo. Fala do povo não muito contente pela maneira como é conduzido o governo. Por isso, revolução é sempre contra o seu próprio governo e não contra um governo estrangeiro. Um ato belicoso contra um governo de outro país chama-se guerra. Está tudo no dicionário.
Alguns historiadores brasileiros refutam esse argumento, dizendo que era uma revolução devido à posse da Bolívia na região. Não faz sentido? Não foi a revolução de pessoas que viviam dentro do território boliviano contra o governo boliviano?
Não, porque não foi feita por bolivianos, mas por brasileiros. Isso faz toda a diferença. O território era boliviano, sim, mas a guerra foi feita por brasileiros.
Como essa guerra começou na sua opinião?
O Tratado de São Ildefonso, de 1777, estabelecia o limite oeste do Brasil no sul de onde hoje fica o Estado do Amazonas. Daí para baixo, era tudo da Bolívia. Em 1867, o ditador boliviano Mariano Melgarejo, que era analfabeto e que não tinha legitimidade para representar o nosso país, deu um brinde de 540 mil quilômetros quadrados para o governo brasileiro.
Por quê?
Porque o governo brasileiro havia lhe dado um lindo cavalo e também duas medalhas de latão. Era uma estratégia, na verdade, porque o governo brasileiro não queria que o Brasil apoiasse o Paraguai em outra guerra em que se metera, por isso ofereceu o presente. E teve sucesso.
Mas 540 mil quilômetros quadrados, doados assim, é muita coisa, não?
Essas terras para os bolivianos não tinham significado algum. Eles preferiam morar lá no alto, a oeste, nos altiplanos andinos. Essas terras baixas, quentes, com bichos e doenças não eram do agrado dos bolivianos.
Então é correto dizer que o Acre foi trocado por um cavalo?
Sim, os cavalos foram um brinde do Brasil ao tirano Melgarejo. Um cavalo e duas medalhas. E ele retribuiu com as terras, assinando o famoso Tratado de Ayacucho.
E por que o senhor acha que o Brasil teria interesse nessa área, sendo que a Bolívia não tinha?
O Brasil era bem maior, tinha uma economia mais desenvolvida e percebeu que o preço da borracha vinha crescendo. Houve uma explosão do preço do látex, na verdade. Ela atingiu um preço altíssimo. Um quilo de borracha custava o equivalente a cinco dólares de hoje, preço tão tentador que vinham aqui aventureiros de todo o mundo.
Quem eram eles?
Eles integravam companhias estrangeiras, mas usavam nomes brasileiros e andavam com brasileiros. Veja, tanta ambição despertada se devia a um único fato: o Acre era o único lugar no mundo onde se produzia o látex. E também no sul do Amazonas, mas em escala desprezivelmente menor.
No Acre, está sendo exibida uma minissérie sobre a guerra.
Sim, eu fui entrevistado por uma equipe da televisão brasileira sobre essa produção. Parte da novela é baseada no famoso Luíz Galvez, esse aventureiro espanhol que criou a República do Acre. No entanto, algumas pessoas não sabem, outras não querem saber, mas o Galvez era pago pelo governador do Amazonas, Ramalho Júnior. Por isso, ele queria fazer um país independente.
Um herói pago?
Não, um aventureiro mesmo. Os documentos da época mostram de tudo um pouco. Era escroque, mulherengo, ladrão, enfim, fazia várias bobagens, mas ele tinha carisma e conquistava as pessoas. Fazia com que elas aderissem à sua causa, sabia conquistá-las. Mas era pago, e muito bem pago, por isso.
E Plácido de Castro?
Plácido era militar. Ele começou a carreira e ascendeu muito, mas, quando chegou à certa patente, percebeu que sua vocação não era aquela, porque ele queria ganhar dinheiro. Então veio para a Amazônia. Em Manaus, foi contratado para fazer incursões, limitando o tamanho dos seringais, mas contraiu malária e voltou a Manaus. Foi então que o governador José Néri, sucessor do Ramalho Júnior, contratou-o para fazer uma demonstração de força do Brasil para a Bolívia. A idéia era fazer os bolivianos desistirem de defender essa região. Por isso, ele foi enviado e também foi pago muito bem.
A sua versão de Plácido de Castro bate de frente com a versão dos acreanos. Lá, ele é um herói, com monumentos em sua homenagem.
Para os brasileiros, Plácido pode ser um herói, mas, para os bolivianos, ele foi um mercenário. Um herói é alguém que dá sua valentia, sua vontade, seu suor por amor à pátria sem compensações. Mas uma pessoa que faz um trabalho de guerra, sendo paga para isso, chama-se mercenário, isso desde a Idade Média. Ele condicionava o seu proceder ao dinheiro que recebia. Um mercenário.
E o Bolivian Syndicate? Até onde é verdadeira a história de arrendamento do Acre para o capital internacional? Foi isso que precipitou os fatos que levaram à guerra na versão brasileira.
Aconteceu o seguinte. A Bolívia não tinha dinheiro para desenvolver seu território, porque perdeu o mar e enfrentava diversos conflitos. Então, o governo planejou participar de uma sociedade anônima para a exploração dos recursos naturais, que, estes, sim, eram vastos. Foi algo parecido com a Lei de Exploração de Florestas recentemente aprovada no Brasil, mas com a diferença de ações para venda. Pelas regras, a Bolívia ficava com 50% da exploração e o restante era vendido a quem quisesse comprar.
Mas isso não foi um atentado à soberania boliviana?
Não, porque o que se negociava era apenas o direito de explorar economicamente as terras, e não de possuí-las. E, como eu disse, o governo boliviano tinha 50% das ações, o que, em tese, impediria qualquer tentativa tresloucada de invadir o território para assaltá-lo. Era uma idéia boa para os bolivianos e para os empresários da época, que inclusive se interessaram.
Quem se interessou?
Quem não se interessou foi o Brasil, que foi convidado, mas não quis. O governo taxou a idéia de maluca. Então, a Bolívia ofereceu à Europa e aos Estados Unidos, onde os industriais mais ricos compraram as ações.
Quais industriais?
Os mais ricos. Deixe-me lembrar. Rockefeller, Kennedy, Ford, Vanderbilt e outros. Todos compraram ações. A família do presidente Roosevelt também comprou ações, havia muitos interessados exatamente devido à borracha. O problema é que, quando o chanceler do Brasil, que nessa época ainda não era o Barão do Rio Branco, era José Paranhos da Silva, viu que a idéia daria certo, resolveu espalhar boatos e assustar os investidores.
Estratégia de mercado?
Isso mesmo. Assustando os investidores, aproveitando-se da sua proximidade na região para espalhar boatos inverídicos sobre desgraças naturais, índios carniceiros, doenças incuráveis e outras coisas, o Brasil conseguiu não apenas a desistência de muitos investidores, mas também comprar as ações a um preço baixíssimo.
Quanto?
Menos de quarta parte do valor original. O governo brasileiro agiu assim até comprar os 50% destinados ao mercado. As ações valiam cerca de um milhão de libras esterlinas. O Brasil comprou todas por 50 mil libras esterlinas.
Então, o Brasil comprou o Bolivian Syndicate?
Isso mesmo.
Mas, convenhamos, o senhor não acha que parte dessa estratégia se devia à preocupação com brasileiros que já viviam na região?
Se assim fosse, se a preocupação fosse essa, o Brasil teria aceitado a primeira oferta e comprado ações para empregar o seu povo. Não havia problema algum. O que a Bolívia queria era investir esse dinheiro em uma indústria poderosa da borracha na própria Bolívia. Quando se trata de mercado, é fácil negociar essas coisas, especialmente porque os bolivianos não moravam nessa região, como eu já citei. A Bolívia precisaria e contrataria mão-de-obra brasileira, pacificamente, mas o Brasil infelizmente queria guerra. O governo de vocês queria a posse das terras.
Mas, se na versão brasileira o argumento mais forte da revolução ou guerra foi exatamente o Bolivian Syndicate, então por que Plácido de Castro usou esse argumento?
Ele mentiu, é claro. E isso confirma a narrativa histórica dele. Quando Plácido dizia que estava lutando pelo Acre para impedir a intromissão dos grandes capitalistas norte-americanos, isso era falso, porque nessa época o Brasil já havia comprado todas as 50% das ações do Bolivian Syndicate.
Mas, se o Brasil havia comprado, por que fazer guerra?
Porque o seu país comprou o direito de trabalhar dentro, apenas. Não tinha a posse da terra. O Bolivian Syndicate nunca negociou a soberania boliviana.
Por que os parceiros comerciais não ajudaram a Bolívia?
Porque eles compravam borracha dentro do Brasil, diretamente. Havia toda uma cadeia de exportação da borracha, burlando-se impostos ao governo federal brasileiro e outras irregularidades. Se fosse pela Bolívia, os compradores teriam que pagar todos os impostos, mas isso não acontecia no Brasil. Então, eles estavam envolvidos demais economicamente para qualquer tomada de posição pró-Bolívia.
Então houve uma certa omissão internacional nesse conflito, é isso?
Houve, porque a borracha era vendida às grandes indústrias de pneus. A indústria do automóvel na época crescia enormemente e precisava de borracha para os pneus. E o único lugar do mundo onde se produzia borracha era aqui, no Acre. E, nessa época, já havia muitos brasileiros na região.
Então, o senhor está dizendo que houve toda uma conjugação de interesses econômicos e que, para mantê-los, o Brasil invadiu um território de outro País e o tomou, usando mercenários pagos. É isso?
Esse é o resumo de tudo. Veja, o governador do Amazonas, Ramalho Júnior, ganhava desse território com a produção e importação de borracha cerca de um bilhão de contos de réis por ano. Se ele perdia esse território, devolvendo-o à Bolívia, ele perderia tudo. E Ramalho precisava, porque gastava muito, inclusive, com malversação de recursos públicos. Ele simplesmente não podia perder essa mina, inclusive, para manter sua influência e poder.
Por que a Bolívia não denunciou tudo à comunidade internacional?
Denunciar para quem? Não existia ONU nem Liga das Nações nessa época. Pior: a Bolívia não podia fazer muito esforço econômico, porque acabávamos de sair da guerra com o Chile. Nessa guerra, nós perdemos 50 mil soldados. A economia boliviana estava quebrada e, logo em seguida, veio esse problema. Não tínhamos recursos para fazer nada e, quando resolvemos fazer, recebemos um ultimato do governo brasileiro.
Como assim?
Quando a Bolívia venceu um conflito com as tropas de Plácido de Castro, em Puerto Alonso, o governo brasileiro colocou em cena o Barão do Rio Branco. Ele enviou uma carta ao governo boliviano com negociações, mas, quando o governo boliviano respondeu que não aceitava, ele mandou essa resposta: “Isso não é uma negociação. É uma ordem!”. E também avisou que 50 mil brasileiros, das Forças Armadas do Brasil, estavam prontos para invadir La Paz e tomar a Bolívia. E estavam mesmo.
Isso está documentado?
Está. Tudo o que estou lhe falando está documentado, com fontes brasileiras e bolivianas. Na segunda edição do meu livro, vou publicar a carta completa do Barão do Rio Branco com o ultimato à Bolívia. Todos poderão conferir como se deu esse assalto, porque foi disso o que se tratou - um assalto.
Mas o governo brasileiro não pagou dois milhões de libras esterlinas pela posse do Acre?
O Brasil nunca pagou essa dívida. Aliás, pagou sim, mas com uma estrada de ferro que nunca foi concluída e dentro do território brasileiro, com gente brasileira e que sequer chegava à Bolívia nem mesmo no projeto. É como se eu tivesse uma dívida com o senhor, comprasse um aparelho de som no mesmo valor da dívida e lhe dissesse: “Eu paguei aquela dívida com um aparelho de som. Está lá em casa. Quando quiser ouvir som, passe por lá”.
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