sexta-feira, julho 06, 2007

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Texto retirado da revista CUT


Por dentro da TV

São 170 milhões de telespectadores. A partir do início da década de 1950, o Brasil tornou-se o país da televisão, num processo de conquista que começou quando as câmeras da PRF3-TV, a extinta TV Tupi de São Paulo, deram início à sedução.

O país abraçou com gosto o eletrodoméstico, que determina padrões estéticos, modifica a linguagem popular, dita comportamento, oferece entretenimento fácil e, no fundo, não quer ser nada mais que uma luminosa e colorida vitrine para a venda de produtos e serviços. Em outras palavras, um bom negócio para os beneficiários das concessões dos canais comerciais.

Essa visão extremamente crítica, adotada parcial ou totalmente por dez entre dez intelectuais, não impede, entretanto, que o veículo seja estudado nos meios acadêmicos. Teses e teses são produzidas todos os anos pela universidade, numa discussão que faz todo o sentido. Afinal, como negar o poder da televisão na vida das pessoas?

Para o bem ou para o mal, sua influência tende a crescer ainda mais a partir de dezembro próximo, com o anunciado lançamento da TV digital no país. A tecnologia que, entre outros recursos, promove a convergência com a Internet, deverá tornar a televisão mais onipresente.

Mas a promessa de um salto de qualidade no conteúdo vem de outra frente: a rede pública, bancada pelo governo federal, cujo lançamento também está prometido para os próximos meses.

Cult convidou jornalistas especializados, pensadores e profissionais do setor a refletir sobre o passado, o presente e o futuro da televisão brasileira. O resultado está nos ensaios, depoimentos e entrevistas publicados no dossiê da CULT de julho, que já está nas bancas. Leia, abaixo, um dos textos do dossiê:

A TV digital pode nos libertar do apartheid
Por Laurindo Lalo Leal Filho

No final dos anos 1980, anunciava-se no Brasil a chegada da televisão por assinatura. Dezenas de canais seriam oferecidos ao público, rompendo os estreitos limites da televisão aberta, único modelo de transmissão até então conhecido.

A tecnologia chegava para democratizar a TV brasileira, dando finalmente ao telespectador ampla possibilidade de escolha. A partir daquele momento, tornava-se irrelevante discutir a qualidade da programação oferecida. Afinal, com a multiplicação de canais, a questão estaria superada. Dali para a frente haveria televisão para todos os gostos. Pelo menos, era o que se dizia.

Doce ilusão. Combinando o abismo na distribuição de renda com a promíscua relação existente entre concessionários de canais de TV e os poderes públicos, a nova tecnologia serviu para tornar ainda mais perverso o papel da televisão no Brasil. Inaugurou-se, com a TV por assinatura, o apartheid televisivo.

De um lado, a minoria economicamente privilegiada, com acesso a uma programação um pouco mais diversificada. De outro, a grande maioria - cerca de 90% da população, ou 160 milhões de brasileiros - condenada a ver programas que, quase sempre, beiram a indigência.

O custo da assinatura é proibitivo para a maioria. Mas mesmo a minoria afortunada, dispondo de mais canais, não se viu contemplada por uma ampla diversidade artística, cultural ou informativa. Melhorou um pouco, mas não muito.

Isso porque a nova tecnologia ficou nas mãos dos mesmos empresários que historicamente controlam a radiodifusão no país. Eles detêm quase todos os novos canais, reafirmando na TV por assinatura o oligopólio consagrado na TV aberta.

Nada indica que o mesmo não venha a ocorrer com a TV digital, anunciada para entrar no ar, em São Paulo, no próximo dia 2 de dezembro. Outra vez, vozes que se levantam contra a qualidade do serviço prestado pela televisão são contidas sob a alegação de que com a nova tecnologia tudo será diferente.

E agora os novos canais não se contarão mais às dezenas, como se previa para o cabo, e sim às centenas, digitalizados. Resta perguntar: quem os controlará? E de que forma serão utilizados?


As perspectivas não são muito animadoras. Há fortes indícios de que uma tecnologia, como a da TV digital, capaz de impulsionar a democratização da oferta televisiva, venha a ser apropriada pelos mesmos grupos que sempre controlaram o setor.

São empresas operadoras de um serviço público atuando estritamente nos limites da lógica comercial, determinada pela maximização dos lucros. Nessa linha, a possibilidade do uso ampliado do espectro reduz e a diversidade da programação ficará, outra vez, posta de lado.

A equação é simples. A digitalização da TV permite o alargamento das faixas de transmissão. Onde hoje trafega uma programação, poderão passar quatro ou mesmo oito. Bem utilizados, outorgados para empresas e instituições públicas capazes de atender diferentes demandas da sociedade, esses canais ampliariam significativamente a oferta de programas, com resultados positivos tanto para o telespectador como para a imensa maioria de produtores.

Ganhariam quase todos: o público, que passaria a ter opções reais de programação, e o mercado produtor independente, hoje sem espaço nas grandes redes. Seria o melhor dos mundos: a diversidade artística, cultural e política do país chegando à casa de todos os brasileiros combinada à ampliação do mercado de trabalho no setor.

No entanto, ao que tudo indica, a nova tecnologia não será usada dessa forma. Aos atuais concessionários de canais analógicos será outorgada toda a faixa de 6 megahertz por onde trafegarão os sinais digitalizados. E eles farão o que bem entenderem nesse amplo espaço.

Poderão multiplicar as suas próprias programações, o que implicará numa definição das imagens um pouco mais baixa (mas ainda semelhante àquelas que vemos hoje através dos DVDs) ou veicular programas únicos em alta definição. Infelizmente, a decisão, mais uma vez, não levará em conta o interesse público. Prevalecerá o que for mais rentável.

Dentro da mesma lógica, deverá ser operada a outra novidade trazida pela TV digital: a interatividade ampla. A nova tecnologia abre a possibilidade de integrar à Internet os milhões de aparelhos receptores de televisão em uso no país.

Para isso, são necessários conversores a preços acessíveis e a reserva de áreas do espectro para esse tipo de serviço. A tendência, observada a lógica comercial, será a introdução de uma interatividade simples, capaz apenas de facilitar a venda mais rápida dos produtos anunciados pelas redes de TV. Se isso de fato ocorrer, estará consagrado o uso medíocre de uma tecnologia altamente sofisticada.

Cabe, ainda, entender melhor quais são os atores até aqui apontados como os maiores beneficiados pela chegada da TV digital: as empresas concessionárias de canais de televisão. Bens públicos, as concessões se tornaram, na prática, privadas e praticamente hereditárias.

A constituição de 1988, ao definir que a não-renovação de uma concessão de rádio ou TV deva ser aprovada por dois quintos do Congresso Nacional em votação aberta, praticamente tornou perenes os atuais concessionários. E sobre o tema há um silêncio quase sagrado. Pesquisadores e jornalistas encontram dificuldade para saber quando começa e quando acaba uma concessão desse tipo.

Com muito empenho se soube, por exemplo, que vários períodos de outorga vencem nos próximos meses. Um assunto de grande relevância social e política. Afinal, são esses concessionários que ditam a pauta nacional, já que a maioria absoluta da população só se informa ou se diverte pela TV.

Cabe então perguntar: será que eles estão prestando um bom serviço público à população? Que contribuição têm dado para reduzir a violência, aumentar a solidariedade, promover o desenvolvimento cultural e artístico da nação? Como estão refletindo a diversidade de idéias existente no país, fundamental para o exercício da democracia? São questões imprescindíveis para uma análise da qualidade do serviço público prestado pelos concessionários.

E está na hora dessa análise ser feita. Sabe-se, por exemplo, que vencem no próximo dia 5 de outubro as concessões da Rede Globo em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte; a da Record, em São Paulo; da Bandeirantes, em São Paulo e Belo Horizonte; da Jornal do Commercio em Recife, entre outras.

Seria o momento de avaliarmos publicamente os serviços por elas prestados nos últimos 15 anos, período de vigência das outorgas. Caberia à sociedade dizer, por exemplo, se está satisfeita com a programação que recebe em casa e quais mudanças propõe para os próximos anos. Seria um excelente exercício democrático, infelizmente ainda desconhecido entre nós.

Das respostas sairia o balizamento para as novas concessões, as quais, seguindo na linha do aprofundamento da democracia, teriam como princípio básico a garantia da diversidade. Seria o modo de romper com a mesmice atual, na qual a competição pela audiência se dá em torno de fórmulas exaustivamente repetidas, desprezando o experimento e a inovação.

Nesse quadro, a única sinalização positiva, ainda que embrionária, é a da criação de uma rede pública de televisão. Se bem-sucedida, poderá alterar o panorama sombrio esboçado até aqui. De um lado rompendo com as amarras do mercado, mostrando ao público a vida que existe além desse limite.

De outro, provocando mudanças na própria televisão comercial, confrontada com um telespectador mais exigente, conhecedor da diversidade televisiva, a ele apresentada pela rede pública. Embora estreito, esse parece ser o único caminho existente, pelo menos neste momento, para alterar o panorama desolador vivido pela televisão brasileira às vésperas da chegada da TV digital.
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Laurindo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero

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