sábado, novembro 22, 2014

A lírica em Tempos Modernos

            
A intenção de trazer a palestra Lírica e Sociedade, do livro Notas de Literatura I, de Theodor W. Adorno (1903-1969), busca a finalidade de apresentar alguns conceitos da linguagem lírica e, para que esses conceitos não permaneçam somente na abstração, incluí as imagens da fábrica de Tempos Modernos, filme de 1936. Assim, este trabalho divide-se da seguinte forma: 1. Lírica; e 2. Em uma fábrica, a linguagem lírica.



1.      Lírica

            Existe a ideia de que, por ser a voz lírica individual, ela se opõe à sociedade; porém, segundo Adorno, a exigência da palavra virginal é em si mesma social. Virginal porque a linguagem lírica não expressa as impurezas da linguagem ordinária e, por causa disso, o lírico se desfaz do peso da objetividade, permitindo soar a imagem de uma vida livre da coerção da prática dominante, da utilidade, da pressão da autoconservação obtusa. Se o indivíduo experimenta a ordem social como hostil, alheia, opressiva, a linguagem lírica, como sua própria ordem, com sua própria lei, expressa a força do verso contra a prepotência da parte frontal das coisas, isto é, contra a superfície delas. Por isso o outro lado, o lado oculto das coisas; por isso virar a página a fim de ler o que se encontra atrás da parte frontal. Por isso o verso. Contra a densidade do coletivo, contra o opaco da objetividade, o lírico propaga seu canto subjetivo em uma sociedade onde a existência tornou-se alheia ao sujeito. O mundo objetivo, o externo, emudece a alma dos homens, mas a linguagem lírica não só fala o verso como também (pro)voca o homem.

            O lírico não é a voz ou o canto do poeta ou de um indivíduo, mas a expressividade de um eu com marca universal; não se trata, porém, de deduzir esse eu-lírico da sociedade, mesmo porque o seu conteúdo social é o que não se segue das relações já vigentes em dado momento. Nesse sentido, quando Adorno cita Hegel, é para afirmar que o individual é mediado pelo universal e vice-versa, ou seja, uma linguagem estética contra a pressão social não é nada de individual. O conteúdo lírico como conteúdo objetivo ocorre em virtude da subjetividade do lírico, que possui a natureza de se afastar da superfície social. É na linguagem estética do lírico que subjetividade vira objetividade, mas sem que as emoções subjetivas amadurecidas diluam-se a ponto de elas perderem a referência irrenunciável ao universal e à sociedade. “As mais altas formações líricas são, por isso, aquelas em que o sujeito, sem resíduo de mera matéria, soa na linguagem, até que a própria linguagem ganha voz”. Uma vez nessa linguagem lírica, que se afasta da superfície social, acontece o autoesquecimento do sujeito, que se põe ao dispor da linguagem como de algo objetivo, assim como o que há de imediato e involuntário em sua expressão. A linguagem lírica se mostra, portanto, mais profundamente garantida socialmente ali onde não fala segundo o paladar da sociedade, onde nada comunica.

2.     
Em uma fábrica, o lirismo


            A primeira imagem de Tempos Modernos, filme de 1936, é o grande relógio com seus números romanos marcando segundos que restam para as 6 horas da manhã; na produção industrial, o tempo materializa-se para ser visto pela massa uniforme de trabalhadores e, uma vez visto, imprime movimento e regula os corpos dos operários a ponto de serem domesticados como porcos. Movimento do relógio. Movimento dos animais. Movimento dos trabalhadores. Quando o operário Carlitos surge pela primeira vez na fábrica, ele aparece ajustando peças na linha de montagem, mas o movimento regular de seu corpo logo é alterado quando sua mão coça rapidamente a axila. Inicia-se a sucessão de desajustes.



        Submetido a trabalhar mais rápido porque o patrão gradativamente ordena aumentar a velocidade das máquinas, Carlitos, que não consegue acompanhar o movimento da linha de montagem, acaba sendo levado como peça pela esteira para dentro da engrenagem. Quando retorna ao ambiente de trabalho, Carlitos agora brinca, baila, transforma suas ferramentas de trabalho em dois exagerados brincos. Metáfora, sua linguagem agora é poética. Se Carlitos é aquele que se afasta da superfície automatizada da fábrica, afasta-se porque ele encarna a expressão lírica – linguagem, segundo Adorno, não alheia ao sujeito.

            Uma vez possuído pelo eu-lírico, o sujeito instaura, entre máquinas e homens autômatos, a estranheza do improvável e do excesso, estranheza que nega o mero funcionar objetivo das coisas. Mas entendamos que a subjetividade lírica, como pensa Adorno em sua palestra, capta o universal no mergulho em si mesmo ou, mesmo, desenvolve-se como sujeito autônomo, mestre da livre expressão de si mesmo. Nesse sentido, Carlitos é mais do que sujeito. O outro, o coletivo dócil, foi rebaixado à condição de objeto. Mas não sejamos tão maniqueístas: a linguagem do eu-lírico, vivenciada por Carlitos, representa a irrupção do que a superfície da fábrica comprime do coletivo para baixo.

            A produção não pode parar. Para tanto, o excesso e o improvável, conceitos que pertencem à natureza lírica, necessitam ser curados. Carlitos precisa retornar à superfície social a fim de seja conduzido à linha de montagem. O palhaço então é lavado ao hospital.

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