Por mais de 20 anos, do ensino
fundamental ao universitário, lecionei no Acre e, como professor de Língua
Portuguesa e de Literatura, conheci de perto a escrita de meus alunos. Conheço
seus erros mais comuns, conheço muito bem a estrutura educacional da escola
pública acriana para afirmar que os índices muito ruins de Língua Portuguesa,
segundo o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), não poderiam ser outros. A
escola pública do Acre ensina muito mal a Língua Portuguesa.
A
Academia Acreana de Letras e a Secretaria da Educação do Acre, entretanto, põem
a público um plebiscito para que, por exemplo, alunos escolham entre “acreano”
e “acriano”. Escrever bem nas escolas se reduz a isso, à escolha de um fonema,
ou seja, à escolha de uma unidade mínima não significativa, porque, nessa
unidade, segundo alguns, encontra-se a identidade de um povo. Escrever
“acriano”, portanto, é perder a identidade do povo “acreano”.
Não
quero aqui pensar, segundo a Filosofia, o conceito de identidade e, segundo a
gramática clássica, pensar o fenômeno na própria palavra para que seja
“acriano”; não quero também entrar na questão justa de, fora da natureza da
própria palavra, escrevermos “acreano”. Sou defensor das duas formas, tal como
existiam antes da atual reforma ortográfica, visto que a Lei 5.765, de 18 de
dezembro de 1971, permitia escrever “acreano” (forma popular) e “acriano”
(forma clássica). No entanto, afirmar que “acreano” mantém a identidade histórica
de um povo por causa de um fonema, convenhamos, é afirmar, por analogia, que a
população brasileense perde sua identidade por ter de escrever, conforme a lei
ortográfica atual, “Brasileia” e não “Brasiléia”. Tanto
o fonema quanto o acento são “traços”. A identidade encontra-se, nesse caso, no
traço?
Se
um “acreano” ou um “acriano” visitar o Rio de Janeiro, sua identidade regional
será identificada por causa do som ou do fonema “e” em “acreano”? Penso que
não. Entretanto, se esse mesmo “acriano” ou “acreano” falar “carapanã da
dengue” e não “mosquito da dengue”, a sua identidade regional marcará diferença
na cultura linguística do Rio de Janeiro? Penso que sim. Igual a “mosquito”,
“carapanã” é gênero, devendo a espécie ser “carapanã Aedes Aegypti” no
Acre e “mosquito Aedes Aegypti no Rio de Janeiro”. Todavia, a Academia
Acreana de Letras e a Secretaria Estadual de Educação do Acre incomodam-se com
o “acriano”, permanecendo indiferentes ao “mosquito da dengue”.
Ora,
a memória habita na palavra, não no fonema de “acreano”, não no
acento agudo de “Brasiléia”. Nós pensamos a beleza identitária do
Acre não por causa de “e” ou de “i”, mas porque “e” e “i” deixam de ser
unidades mínimas não significativas NA PALAVRA, quer dizer, por estarem NA
PALAVRA, deixam de ser unidades mínimas não significativas porque os fonemas “e”
ou “i” se relacionam com outros fonemas NA PALAVRA. É a palavra, portanto, guardiã
da memória; pois, nela, NA PALAVRA, as relações fonêmicas possibilitam o fonema
ser unidade mínima significativa ou, mais ainda, possibilita NA PALAVRA o
sentido de um povo ou perda dele.
Sou
pai de uma filha acriana ou acreana, Lara Valentina, e ela chegará ao Rio de
Janeiro ainda neste mês para conviver comigo, com a minha esposa acreana ou
acriana e com a cultura carioca. Quando pequena, creio uns 9 anos, ela me
perguntou o que ela deveria fazer para também ser carioca. Pensei um pouco e
disse-lhe “diga sempre pernilongo ou mosquito, jamais carapanã”. Quando ela
pisar em solo carioca, a primeira coisa que direi a ela será “minha acriana
filha, diga sempre nesta parte do Brasil 'carapanã', porque essa palavra marca
a sua identidade regional”.
Aldo Bourdieu é professor de Filosofia, de Sociologia, de Literatura,
de Religião e de Língua Portuguesa.
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