Quando o Natal bate à
porta de sua casa, Jorge Antônio acolhe o nascimento de Jesus Cristo como Papai
Noel. Sala de visita ambientada com árvore fecunda de presentes. Luz
direcionada à cadeira de Noel quando ele chegar. Sobre almofadas distribuídas
na sala, crianças e pais emocionados à espera do Bom Velhinho.
Transfigurado pela
imagem de Papai Noel, Jorge solta seu “ho ho ho”, e a porta da casa se abre
para a irrealidade entrar na forma de um homem idoso; ele se faz presente não
só para entregar presentes às crianças, mas para deixar uma mensagem a cada uma
delas.
A questão aqui não é
se Papai Noel existe ou não, e sim que a fantasia tem algo profundo a dizer às
crianças; ela faz falar o que a realidade social dos adultos enfraquece,
diminui, inferioriza, deforma. Ao acolher a inocência infantil, a fantasia a
protege com a fortaleza da ternura, com os muros delicados do bem-querer; e,
assim sendo, Papai Noel abre uma possibilidade de encontro que Jorge Antônio,
por si mesmo, não abriria por lhe faltar a força afetiva de um sensível que se
excede.
Jorge conhece os
netos. Por essa razão, seu amor por eles pode, com carinho, chamar a atenção de
cada um, dizendo a David, por exemplo, que ele não pode desrespeitar a sua mãe.
“Você já imaginou, David, viver sem sua mãe?”, pergunta Noel. “Eu não ia parar
de sentir dor”. “E você gosta de sentir dor?”. “Não, Papai Noel!”. “Então você
não acha que sua bondosa mamãe merece desculpas e merece ouvir de ti que você a
ama?”. “Acho, Papai Noel, mas como o senhor sabe que xinguei ela?”. David não
sabe que Noel é o pai de sua mãe, ou seja, a fantasia oculta o avô Jorge (ou o
real) para deixar o mistério: “Como o senhor sabe que xinguei ela?”.
O
senso comum crê que a fantasia distancia a criança da realidade; porém, por
meio do avô Jorge, a fantasia é uma forma afetiva de questionar a realidade de
David. A fantasia zela pelo respeito, pela gratidão; não afasta a criança da
realidade, mas oferta a ela uma “sensação excedente” na realidade. A fantasia
fala do que nos falta ou do que a realidade nos arrancou; ela não nos distancia
da realidade, mas nos aproxima dela para incomodá-la, no sentido de que a
realidade se encontra desajustada, por exemplo, um filho xingar a mãe ou a mãe
xingar o filho.
O
Papai Noel, realizado pela família, tem o tempo precioso para contar
“estórias”, sendo o Bom Velhinho, portanto, aquele que encarna a imagem
expressiva do narrador, que escolhe uma narrativa para acolher a mensagem
natalina destinada a suas crianças, crianças que não sabem que Papai Noel é o
vovô Jorge. Mistério. Assim, por causa de sua natureza misteriosa, o Papai Noel
da família é experiência mítica que possibilita a inocência escapar de uma vida
dominada de modo realista.
“Seu grande amigo Jorge Antônio faleceu”, disse-me
o destino. Papai Noel da família agora é o filho mais velho, o que é bem
diferente de o Bom Velhinho estar em shopping, pois, nesse ambiente
antinatalino, todo Noel não passa de um estranho disfarçado dentro de uma
máquina comercial, com a pretensa boa intenção de encantar o consumo infantil.
Se Papai Noel de shopping tem algum amor à criança, esse amor não resiste à
falta de salário. O “ho ho ho” de shopping center é risada de um empregado
idoso a cumprir jornada de trabalho, não havendo, portanto, nenhuma gratuidade
em seu sorriso. O Noel de shopping não quer saber se um dos netos de Jorge
xingou a mãe, mesmo porque David não passa da 81ª criança que se senta hoje no
colo do Bom Velhinho, onde não há tempo de David escutar algum conselho sobre
respeitar os pais. E, mesmo se houvesse, inútil seria, pois esse Papai Noel
desconhece as 100 crianças/dia (meta do funcionário) que se sentaram em seu
colo. Uma selfie com esse tipo de Noel é o máximo que a inocência
consegue de uma produção em série.
Papai
Noel de shopping não é fantasia, mas objeto alienado pelo capital e a serviço
do comércio para aquecer as vendas, ditas natalinas. Lugar sedutor de
hiperconsumo, onde as palavras são usadas para identificar objetos, o shopping
submete a fala de Noel à condição imediata de uso em um lugar onde a
palavra não foge à utilidade.
Poucos
avós levam aos lares mensagens aos netos por meio da força simbólico-afetiva do
Bom Velhinho. No meu amigo Jorge Antônio, havia certo grau de desobediência
civil quando se transfigurava de Papai Noel. Muitos levam netos ao shopping;
nesse espaço, porém, um estranho se disfarça de Bom Velhinho, desconhece a vida
de cada criança e obedece ao uso utilitário do capital.