ZIRALDO,
A CRIANÇA QUE AINDA BRINCA
De Aldo Tavares
Publicado pelo Jornal do Brasil
Faz
16 anos que levei minha filha ao Ziembinski para assistir a uma peça escrita
por Ziraldo, “Bonequinha de pano”, cuja protagonista encontra-se esquecida no
sótão de uma casa, até que uma menina a encontra. Trago este livro aqui para
lembrar que a inteligência sensível de Ziraldo é aquela que sempre escreveu a
palavra criança em seu devido lugar de criança; e, quando digo devido lugar, digo
conceitos que pertencem à natureza de criança. Um desses conceitos, este: brincar.
Neste
ano, a Boitatá, selo da Boitempo, publicou “O capital para crianças”, onde
conceitos inerentes ao mundo infantil ausentaram-se, posto que a proposta de
suas páginas é registrar a infância no materialismo histórico, por isso a criança
diz ao vovô Marx: “Conte uma história pra gente, por favor! mas nada de
cavaleiros e princesas, nem de reis e dragões, nem cinderela, nem chapeuzinho.
queremos uma história de verdade”. O marxismo infantil escreve a palavra criança
sobre linhas retas e sérias.
Também
escrevendo sobre linhas retas e sérias, o mercado editorial neopentecostal publica
literatura infantil para que a criança aprenda a se conduzir com retidão por
meio de narrativas bíblicas. Tal qual o marxismo para criança, a inocência na literatura
infantil neopentecostal deve ouvir a verdade não do vovô Marx, mas a verdade da
vovó Igreja.
Exposto
isso, podemos afirmar que marxismo e religião se abraçam ou igualam-se, visto
que as duas literaturas infantis “limpam” a criança das narrativas falsas com a
linguagem asséptica da verdade, a mesma verdade com que Platão disciplina a
criança em A República e em As Leis, qual seja, verdade que, separando-se
das diferenças, fixa valores absolutos. Essa verdade jamais se distancia da
ideia de real, por isso que as literaturas infantis marxista e religiosa têm
cunho realista.
Evidente
que, por causa de princípios democráticos, essas literaturas devem e precisam
existir, mesmo porque, se não existissem, não seriam criticadas aqui; e a
crítica, sem os apelos de ideologias e de emoções religiosas, é o exercício de
uma razão que busca com equilíbrio qualificar ideias, nesse caso, a ideia de
criança, que é a ideia de brincar. Em “O capital para criança”, porém, a inocência
não brinca, o que não ocorre em “O Menino Maluquinho”, de Ziraldo, “onde tudo
que é bom é brincadeira”.
A
criança não busca a verdade. Ela busca
brincar. Se a verdade se separa das diferenças a fim de fixar valores
absolutos, a fim de se dizer pura, a criança brinca, pois brincar, que mistura,
alegra: o Menino Maluquinho “deitava/
e rolava/ pintava e bordava/ e se empanturrava/ de bolo e cocada/ E ria/ com a
boca cheia/ e dormia/ cansado no colo da vovó/ suspirando de alegria”.
Mas
a criança que pede ao vovô Marx contar a verdade é criança que não sabe brincar;
o marxismo para criança, que não reconhece o ato de brincar como natural à infância,
também não pode reconhecer um conceito inerente ao brincar, a saber, ele: que proporciona
à inocência alegria, qual seja, o falso. Brincar é experimentar o falso; e, ao
experimentá-lo, a criança é afetada pelo excesso. Pais que assistiram com seus
filhos à peça “Bonequinha de pano” possibilitaram às crianças o acesso ao
brincar, desde que admitamos a relação estreita entre o brincar e o irreal ou
entre o brincar e o falso.
Uma
criança que se fantasia, por exemplo, de boneca Emília brinca de Emília e, ao
mesmo tempo, falseia os limites do real. Por causa da ficção do falso, da
fantasia, a criança se alegra, visto que o falso oferta ao infante um certo
grau de expansão. Na literatura de Ziraldo, a inocência se alegra. “Desde que
existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é
nosso pecado original! Se aprendemos a nos alegrar melhor, melhor desaprendemos
de causar dor nos outros e planejar dores”, escreveu Nietzsche em Assim falou Zaratustra.
As
literaturas infantis marxista e religiosa, assim como a fábula nobre de Platão,
são ficções verdadeiras que representam a moral reta a que a criança deve ser submetida,
bem diferente do brincar desobediente e alegre do Menino Maluquinho, cujo
comportamento escolar recebe dos professores ZERO.
Quando
eu soube que Ziraldo encontrava-se no hospital por causa de um AVC, perdi por
alguns segundos a respiração em um mundo que tinha acabado de ficar ainda mais
desencantado. A verdade tinha me asfixiado. Eu quis, porém, acreditar que a
criança de 85 anos, na verdade, brincou de partir para sempre. Melhor assim:
brincar, fingir, falsear.
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