quarta-feira, maio 23, 2007

Profissão Professora






Professora Ingedore Villaça Koch






A especialista da Unicamp sugere caminhos para os professores reverterem os índices oficiais, que mostram alunos de 4ª e 8ª séries incapazes de interpretar textos.
Texto de Luiz Costa Pereira Junior
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A pequena Inge lia de dar na vista. Tanto que chamou a atenção do diretor da escola Rodrigues Alves, quando fazia o 4º ano na Avenida Paulista, na São Paulo de 1944. Virou bibliotecária aos 10 anos. Pouco importava a obrigação de ficar lá após a aula. O que queria era o luxo de levar livros pra casa. Devorava três por dia. Aos 15 anos, dava aula particular. O dinheiro, curto. A solução, nos sebos.
A paixão de infância pela leitura virou vocação para Ingedore Villaça Koch ("nasci professora, morrerei e reencarnarei professora") e área de pesquisa. Perdeu a conta dos colégios em que ensinou. Mas ao fim do colegial fez Direito, induzida por colegas, para quem advogados ganhavam melhor e também davam aula de português. Formou-se em 1956, na USP. Nunca exerceu. Fez carreira em Letras. Trabalhou 12 anos na PUC-SP, antes de ingressar na Unicamp, em 1987.

Aos 73 anos, é uma das maiores especialistas em lingüística textual. Escreveu 14 livros e até gramática. Alvinha, franzina, determinada, circula o país para ensinar professores. É militante do idioma. Acha que deve dar sua parte para reverter cenários como o da Prova Brasil, do Inep, que em 2006 mostrou que os alunos da 8ª série não entendem a intenção de um autor de HQ nem identificam a tese de textos argumentativos. Enquanto os da 4ª não entendem mais de uma informação por parágrafo nem digerem artigos longos.

Os dados não a assustam. "Já foi pior", diz. Para ela, os professores não podem lavar as mãos ante os problemas estruturais da Educação. Podem fazer a sua parte num país em que só um em cada três alfabetizados lê livros (UFRJ, 2004). A sala de aula, diz ela, pode ajudar a mudar isso. Nesta entrevista, Ingedore mostra como.

Língua Portuguesa - O que um professor pode fazer para reverter o quadro revelado pela Prova Brasil?
Ingedore Koch - Em primeiro lugar, não se deve ensinar a língua só com base na gramática. Segundo, é preciso expor os alunos a muita leitura. A gramática deve ser usada para mostrar como os textos funcionam. Para mostrar quais as pistas que um texto dá para que o leitor seja capaz de construir um sentido. Muito professor diz que baseia seu trabalho no texto, mas se limita a pedir ao aluno que destaque nos enunciados um dado número de substantivos ou de pronomes. Esquecem, por exemplo, que os elementos de coesão, importantíssimos num texto, são todos gramaticais.
O ensino da gramática não ajuda à produção e compreensão de textos?
Ensinar a gramática pela gramática não leva à produção de textos melhores. Se os alunos reconhecerem como os ele­mentos da gramática melhoram a organização textual, o ensino ganha vida.
Um modelo calcado na gramática pela gramática fez o Brasil ter baixos índices de compreensão de texto?
Ajudou. Faz com que o aluno decore listas de adjetivos, aumentativos, verbos, sem ver utilidade nelas. Seria diferente se ele fosse perguntado por que um período se liga a outro, que elemento permitiu isso, que função se estabelece entre um enunciado e outro. E só então informá-lo que se trata de conjunção, locução conjuntiva ou prepositiva, se é substantivo ou expressão nominal que retoma algo já apresentado, mas que abre caminho para informação nova. O texto é como um crochê. Você dá o primeiro ponto, pega a agulha, puxa e dá outro, e assim vai. Quais elementos ajudam a puxar o primeiro ponto? Quais costuram duas partes? Mostrando esse funcionamento, aprende-se gramática no texto.
Tem razão quem diz que não se deve ensinar gramática no ensino médio?
É preciso priorizar a construção do texto, mas deve haver momentos de reflexão sobre os elementos da língua que permitem isso. Não se pode abandonar a gramática, nem haver só o ensino gramaticóide. Ficar só na análise sintática, na classificação abstrata de orações, não leva a nada. É diferente se, nas primeiras séries, ensinamos o aluno a acrescentar, a um pequeno enunciado, uma idéia de tempo ou de condição, de causa. Diante da frase "Os pássaros cantam", quando cantam? "Na primavera", "de manhã cedinho", como resposta, acrescentam idéia de tempo. Com isso, alertamos, sem dar nomes aos bois ainda, que há elementos que estabelecem essa idéia. Então podemos combinar tempo com causa, com lugar, e em diante, construindo enunciados maiores. Na hora da sistematização, no fim do ano, aí sim damos nomes aos bois: isso aqui que você usou era um advérbio, aquelas duas palavras com mesma função eram locução adverbial. Primeiro deve-se dar o uso, a função, o trabalho com a língua. Depois a nomenclatura.
Esta é a razão de o brasileiro considerar chato o português?
Ele precisa aprender a ter gosto pela aula, prazer em ler e escrever textos, ler os dos colegas, discutir em grupo. A criança é muitas vezes mais crítica que o professor, mas termina achando que língua portuguesa é uma disciplina como as outras.
E não é?
Não, é o lugar de interação. Os alunos são acostumados a fazer uma separação total entre a língua que usam e a que aprendem na escola. Mas a disciplina é uma maneira de o aluno aperfeiçoar-se para lidar melhor com as situações do cotidiano.
O jovem de hoje não teria perdido a capacidade de textualizar, de unir informações dispersas?
Se você não consegue tornar a aula interessante, ele busca o interessante fora dela. TV e internet são mais rápidas e não exigem muito esforço. Mas ele pode ter dificuldade em juntar, num texto ou num raciocínio, toda informação que absorveu. Sem hábito de leitura, é muito mais difícil. No meu tempo, havia rádio e livro. Hoje a solicitação é tanta que, se o aluno não achar um motivo razoável para ler, não vir a leitura como passatempo gratificante, procura outra coisa. Com os chats e orkuts nunca se escreveu tanto. A internet resgatou o gosto pela escrita. Mas é preciso mostrar que são linguagens que não se ajustam a toda situação e quem quiser escrever um texto mais complexo terá outro tipo de esforço. É preciso espalhar amor pelo que se faz como professor.
Como o professor, contra tudo e todos, pode fazer isso?
Mudando a concepção de leitura e de escrita que se usa em sala. Não se trata mais de pôr o foco só no autor, no leitor ou no texto, mas em todo o tripé. O autor tem um projeto de dizer que organiza o texto, colocando nele pistas para levar o leitor a determinado sentido. O texto é a materialidade que o leitor tem diante dos olhos e contém essas orientações. Já o leitor não é passivo, como se apenas restasse a ele entender as intenções do autor. O leitor constrói sentido, que pode ser mais ou menos próximo do que o autor tinha em mente. Não há lei­tura "correta" ou "errada", há gradações. Temos leituras que mais se aproximam do projeto de dizer de um autor e as que ficam mais distantes até que se tornam inaceitáveis. Tudo porque a leitura depende dos nossos conhecimentos de mundo.
Contexto é tudo...
Duas pessoas dificilmente farão a mesma leitura de um texto. Não há texto totalmente explícito. Como se chega ao que está implícito? Ligando o que está no texto ao nosso saber de mundo. O leitor com pouco conhecimento fará a leitura superficial. Quanto mais acumulamos de saber, mais a fundo chegaremos.
Por esse raciocínio, é preciso uma nova concepção de escrita, também...
A concepção de escrita é o projeto que sigo para que meu leitor construa um sentido o mais próximo do que desejo. Como eu posso ajudar o leitor a fazer isso? Colocando no texto as pistas que permitem ao leitor chegar lá. Que pistas são essas? Em parte, são as gramaticais, pois mostram as relações, o que está sendo retomado e em que sentido quero que o texto avance, construindo novos objetos de discurso a partir daqueles que já estão presentes num dado texto.
Qual a melhor maneira de estimular a produção de texto?
Primeiro, não colocar um tema no quadro e dizer: "escrevam". Há um texto do Luis Fernando Verissimo, Autóctone, em que uma menina tinha de escrever, num dia lindo de outono, uma redação com a palavra "autóctone". A crítica ali é ao professor que dá temas sobre os quais os alunos nada conhecem. Mesmo que ele saiba organizar frases, conheça a gramática, combine frases, não será capaz de escrever nada sobre o tema.
E como ajudar um aluno a melhorar sua capacidade de interpretação?
Receita de bolo não há, mas é possível tornar a aula de leitura instigante ao debater a diversidade de interpretação. Evitar o que se faz em muitas escolas, em que as perguntas são de "copiação", como diz Luís Antonio Marcuschi, da UFPE. Há perguntas banais feitas na própria ordem em que o texto se apresenta. "Como se chama a menina?" "Que bichinho ela tem?" "Ela gosta do bichinho?" Isso não leva a nada porque você só destaca do texto os trechos que respondem às perguntas. É preciso ler em grupo, perguntar a cada um o que entendeu, confrontar interpretações.
Qual o exercício ideal para ajudar o aluno a identificar o tema de um texto?
Todo texto tem palavras-chaves, e podemos encontrar os termos que constituem sua espinha dorsal. Ver o que é dito a respeito dessas palavras e como outras idéias são desenvolvidas a partir delas.
O brasileiro tem aversão à leitura?
Não sei se aversão, mas sempre teve dificuldade em ler e entender, porque não foi escolarizado ou, quando foi, não foi treinado para isso na escola. Há muito a fazer. O principal é o espírito da coisa, não as técnicas para chegar lá. É mudar a concepção de aula de língua, de leitura e produção de texto. Quando eu era mo­cinha, o aluno lia a lição e tinha de procurar no dicionário as palavras difíceis para substituí-las por sinônimos. A gente buscava o equivalente fácil. Mas, muitas vezes, não servia. O exercício ficava estapafúrdio. Pois há os contextos. É preciso ver a palavra que serve, não o sinônimo imediato. No meu tempo, era dada importância à posição do corpo ao se pegar o livro, o que criava autômatos. Quando o professor queria que o aluno contasse o que leu, ele não sabia, não lera com atenção. Era a aula de leitura da minha época. A questão é que, em muitos cantos, ainda é assim.
Como assim?
Há as fichas do livro que toda a classe lê e tem de responder a perguntas bobas, sobre quem é o personagem, se gostou do texto, etc. Aluno, assim, sempre responde: "gostei porque é interessante". É preciso promover situações reais de leitura. João Wanderlei Geraldi, da Unicamp, já disse: que cada professor crie a biblioteca de sua sala, cada aluno trazendo um livro de que gostou para emprestar aos outros. É boa a idéia de criar um dia de discussão de leitura. Um aluno falar sobre um livro de que gostou estimula a curiosidade dos amigos. E toda a turma pode discutir a obra, assim como jornais, revistas, quadrinhos e gêneros que achou interessantes. É preciso ensinar os gêneros, pois eles estão ligados às praticas sociais.
Como um gênero espelha uma prática social?
Numa petição judicial sobre briga imobilliária, por exemplo, você tem a descrição do imóvel, a narração do ocorrido, a argumentação jurídica, tudo combinado. Há gêneros que fazem combinação de tipos de texto, como esse. Outros elegem um tipo de texto (narração, argumentação, etc.) mais narrativo ou descritivo, por exemplo. É preciso mostrar os tipos textuais nos vários gêneros e os tipos que cada gênero elege. Mas muito professor ainda confunde gênero com tipo.
É possível ser otimista com a leitura no Brasil?
Há uma mudança em processo. Já tivemos muita melhora. Os Parâmetros Curriculares Nacionais têm proposta inspirada na lingüística textual. Indicam que se deve ensinar por meio do texto, o texto com base nos gêneros, a ler e a produzir. Mas os PCNs, mesmo discutidos, não chegaram a todo Brasil. Muitos professores não têm idéia ou, se já viram os PCNs, confundem conceitos. O país é grande demais. É preciso tempo e engajamento dos governos, não só federal. Há o programa de livros didáticos do MEC, há cursos de educação a distância, de explicitação dos PCNs. Mesmo o governo tenta fazer sua parte. Mas falta muito.
O que o Estado deixou de fazer?
Não adianta construir prédios escolares sem material didático e professores preparados. Como exigir isso dos professores? Num curso em Pernambuco, uma professora me disse que não podia fazer o que eu dizia, pois na cidade dela não chegava material escrito. "Trabalho em sala com bula de remédio", disse. Nem todos têm acesso ao ensino a distância ou a cursos de especialização. São pagos, os professores ganham mal, trabalham em todos os períodos e nos fins de semana corrigem trabalhos e provas. Pode haver boa vontade de um governo, mas a estruturação política não ajuda. Um governante não aproveita o que o outro fez e nem precisa ser de partido contrário. Esse modelo é nocivo não só à Educação, mas as questões estruturais são sérias. Não se pode culpar o professor.
Tampouco podemos tirar a responsabilidade deles, não acha?
Nos anos 70, a maioria achava as novas teorias bonitas, mas impraticáveis. Hoje, muitos já as conhecem. Mas há lugares demais em que as novas informações não chegaram ou chegaram distorcidas. Muitos dão a mesma aula há 40 anos. Sabem de cor o que vão dizer e a gramática ultrapassada que usam é só com o que sabem lidar. Quando chega um professor com intenções de mudança, a reação é violenta. Outros querem, mas não têm condições necessárias. O professor luta contra uma realidade adversa. Mas é aí que descobre se honra a profissão que escolheu.

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