segunda-feira, junho 12, 2006

Um Livro Lançado

Sociólogo diz que o indivíduo vive sob a ameaça da "colonização da existência", ataca Naomi Klein e aponta a pobreza e a educação como os grandes problemas hoje
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Depois da surgimento do capitalismo de massa, no fim do século 19, e da "sociedade de abundância", no pós-guerra, o mundo vive hoje uma nova forma de consumo, iniciada nas duas últimas décadas e marcada pela oferta incessante de produtos em escala e intensidade jamais vistas.
Nesta nova "era do hiperconsumo", o apelo ao consumismo entranhou-se no cotidiano de toda a pirâmide social - ricos, pobres e classe média - e moldou uma forma inédita de relacionamento do indivíduo consigo mesmo e com o outro -para o bem e para o mal.
Essa é a tese defendida pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky, 61, em seu recém-lançado "Le Bonheur Paradoxal" [A Felicidade Paradoxal, ed. Gallimard, 378 págs., 21 euros, R$ 60], ainda sem previsão de publicação no Brasil.
Em seu estilo verborrágico e coalhado de exemplos, o sociólogo faz a defesa do consumo como forma de terapia contra as frustrações cotidianas -"a superficialidade é necessária"-, mas alerta que, no século 21, ele está se aproximando perigosamente de uma forma de totalitarismo, que "coloniza as existências" dos indivíduos.
De um lado, uma poderosa terapia que ajuda a afastar as frustrações diárias; de outro, um mecanismo de produção de ansiedade em um mercado cuja razão de ser é a contínua oferta de "novidades" - de que são exemplo as novas e polêmicas chuteiras do atacante brasileiro Ronaldo, recauchutadas pelo fabricante a partir do modelo anterior, mas cujo preço mais que dobrou.
Caminhando o tempo todo no fio da navalha em suas argumentações, Lipovetsky diz que o hiperconsumo encurtou as diferenças entre as classes sociais, mas, ao mesmo tempo, passou a se nutrir delas. Pois, afirma, ao estimular a compulsão pela compra como objeto de desejo, a sociedade de hiperconsumo leva as pessoas com menos renda a se tornarem, na ausência de meios materiais, consumidoras apenas potenciais - só "na imaginação".
A conseqüência dessa impossibilidade é "a delinqüência, a violência, a criminalidade", diz o sociólogo -curiosamente aproximando-se da opinião do governador de São Paulo, Cláudio Lembo, para quem "o consumismo estragou o Brasil" (Folha, 31/5). Lipovetsky bate de frente com as teses de uma obra emblemática da crítica à fetichização do consumo, lançada em 2000: trata-se de "Sem Logo" (Record, da canadense Naomi Klein.
Ao enfatizar a "tirania" das marcas na sociedade, ela não leva em conta que as pessoas "dispõem de liberdade" para escolher; consumo não é o equivalente do facismo", diz o professor da Universidade de Grenoble. Na entrevista abaixo, concedida por telefone de Paris, o autor de "A Terceira Mulher" (Cia. das Letras) e a "A Sociedade Hipermoderna" (ed. Barcarolla) começou falando da "medicalização" do consumo, como "terapia cotidiana".

FOLHA - Por que o hiperconsumidor é alguém que vive uma relação ambígua e quase esquizofrênica com o prazer, como diz em seu livro?
GILLES LIPOVETSKY - Porque o consumo se tornou uma terapia cotidiana, funcionando como uma espécie de droga psicológica: faz esquecer, faz mudar de ares. Assim, ele é ao mesmo tempo uma busca de prazer - viajamos nas férias, decoramos a casa, vamos aos restaurantes- e uma forma de expulsar a angústia e a ansiedade.

FOLHA - Esse é o lado positivo do consumo?
LIPOVETSKY - Sim, mas há outros aspectos, que são negativos. Vivemos em um universo em que as referências se evaporaram ou ficaram desreguladas.A própria obesidade é uma conseqüência do hiperconsumo, porque ela destrói estruturas, referências e tradições sociais e culturais. Outrora, comia-se em horário fixo; hoje, em uma cidade como São Paulo, por exemplo, pode-se comer qualquer coisa a qualquer hora. Segundo pesquisas realizadas na Califórnia, um em cada dois norte-americanos não sabe o que é uma refeição equilibrada. Sabe-se também que uma porcentagem significativa da população da França e dos Estados Unidos não faz nenhum exercício físico. Em uma vida que é completamente hedonística, tudo leva à facilidade. As pessoas assistem ao futebol na TV, mas não o praticam, assistem ao Carnaval na TV, mas não vão às ruas "pular". Então, temos modos de vidas que são completamente desregulados, em que há excesso de todos os lados. Há excesso de comida, excesso de gordura, excesso de ócio.
FOLHA - Essa desregulação é conseqüência direta da falência dos grandes sistemas - sociais, religiosos, políticos?
LIPOVETSKY - Sim, mas foi o hiperconsumo que exacerbou tal desregulação. Porque existe uma oferta permanente, uma estimulação contínua. Mas há um segundo aspecto muito importante -e negativo. O sistema de hiperconsumo hedonístico desregulou totalmente o sistema de educação. Cada vez mais você tem jovens e mesmo crianças agitadas, que não conseguem se controlar. Os mais desfavorecidos também são hiperconsumidores, embora apenas na cabeça Mas por quê? Porque os pais hoje não são mais capazes de lhes definir o sentido de limite, incapazes de estruturar seu comportamento. Há crianças que passam, diariamente, cinco horas diante da TV simplesmente porque os pais não conseguem lhes dizer "não". Os pais hoje têm medo de frustrar os filhos. Essa é uma conseqüência do hiperconsumo.
FOLHA - E por que os pais não conseguem dizer "não"?
LIPOVETSKY - Porque os valores hedonistas, o culto da felicidade, se tornaram centrais. Então, teme-se que a criança se frustre, que não seja feliz.
FOLHA - Os pais são hoje uma exacerbação do Maio de 68?
LIPOVETSKY - Exatamente, mesmo sem sabê-los, eles são "soixante-huitards" [referência aos manifestantes de Maio de 68]. Os pais se tornaram fracos. Assistimos hoje a uma falência do sistema de educação, e acredito que esse é um enorme problema e um dos grandes desafios para o século 21. Esse aspecto também se pode detectar entre as pessoas mais pobres, que são completamente obcecadas pelo consumo. O consumo em si não é negativo, não é em si um drama, mas assim se torna quando invade completamente a existência. Quando pessoas pobres não têm como pagar a eletricidade, mas compram um aparelho de TV, quando as pessoas não conseguem comer bem, mas gastam dinheiro para comprar produtos de marca -um tênis Nike, por exemplo-, vive-se uma situação louca. Nesse sentido, o consumo colonizou as existências. Não sou contra o prazer do consumo. O consumo é bom, a superficialidade é boa, temos necessidade deles. Não é preciso ser moralista, como o são os marxistas. Mas sou contra o totalitarismo do consumo, que impede o desenvolvimento dos outros aspectos necessários à existência. Porque o homem é alguém quem pensa, que crê, que deve se superar. Ele não pode ser simplesmente um "homo consumericus".
FOLHA - Pode-se dizer, então, que existe uma dialética entre autonomia e dependência na sociedade do século 21?
LIPOVETSKY - Não sei se dialética, mas certamente uma coexistência. Porque hoje temos consumidores que são mais livres do que antigamente, mais autônomos porque mais bem informados; os códigos sociais de antigamente são menos fortes e, de modo geral, pode-se, viver de acordo com os seus desejos. Tem-se à disposição uma oferta de consumo muito diversa, e isso é bom. Mas, ao mesmo tempo, há também uma dependência dos indivíduos em relação ao consumo. E dependência e autonomia andam juntas hoje. Há 50 anos, o consumo era algo relativamente pequeno na vida das pessoas. Vivia-se com muito pouca coisa; já, hoje, há carros, telefones, computadores, viagens para toda parte, o que leva as pessoas a tornarem-se escravas do consumo. É por isso que falo de "felicidade paradoxal", porque, ao mesmo tempo, há mais autonomia e menos autonomia.
FOLHA - Mas esse hiperconsumo não é para todos. Em um país como o Brasil, por exemplo, parcelas expressivas da população estão alijadas do acesso a vários produtos...
LIPOVETSKY - Mas o problema é que a sociedade de consumo cresce par a par com o crescimento das desigualdades. E aí reside um verdadeiro drama porque, se é um fato que a pobreza sempre existiu, hoje as pessoas mais desfavorecidas também são hiperconsumidoras, embora apenas na cabeça.

FOLHA - Apenas na imaginação?
LIPOVETSKY - Sim. Assim como todos os demais, as pessoas com menos renda também querem marcas, a moda, a televisão, o iPod... Elas também querem a vida hedonística, e isso torna as coisas mais complicadas, pois nem sempre conseguem o que desejam.

FOLHA - E quais as conseqüências sociais dessa impossibilidade de hiperconsumir?
LIPOVETSKY - A delinqüência, a violência, a criminalidade. As pessoas não querem viver mal, elas também querem participar da sociedade de hiperconsumo. E, como isso é difícil, podem lançar mão de formas imediatas para conseguir dinheiro -como tráfico de drogas e roubo- e pagar pelas marcas. Porque, se você não tem os produto de consumo, você está excluído da sociedade.

FOLHA - O hiperconsumidor é alguém que vive para um futuro que nunca se cumpre?
LIPOVETSKY - É preciso ter cuidado para não diabolizar o tema, porque os intelectuais que se debruçaram sobre o fenômeno nos últimos 50 anos foram terríveis, apocalípticos.

FOLHA - Como Naomi Klein?
LIPOVETSKY - Exatamente. Não concordo com suas análises, que acho pouco exatas. Naturalmente, elas têm algo de verdadeiro -o excesso de marcas e a invasão do espaço privado pelo excesso de publicidade. Mas essa invasão não é o equivalente do facismo, pois os indivíduos também dispõem de muita liberdade. O consumo não é o totalitarismo; o universo do hiperconsumo é também aquele em que as pessoas vivem bem e por muito tempo. Há também o consumo médico, e isso é bom. Certamente que há um lado criticável no consumo, mas não é aquele que Naomi Klein aponta. Ela vê apenas o lado superficial da questão, que são as marcas. De fato, as marcas são importantes, mas sobretudo para os muito, muito pobres. Para os outros, o consumo se dá de modo bem pouco fiel... Eles mudam de marca, e isso não é um grande problema. O verdadeiro problema hoje é a educação, a pobreza e o desemprego, a depressão, a ansiedade -e não as marcas.

FOLHA - Pode-se dizer que o hiperconsumidor é alguém em busca de si mesmo?
LIPOVETSKY - Sem dúvida. Mas, lendo o livro de Naomi Klein ["Sem Logo"; leia texto na pág. ao lado], temos a impressão de que os indivíduos não existem -só existem as marcas e os negócios. Para ela, os indivíduos recebem as marcas sem conseguir reagir, como se fossem escravos. Mas você pode assistir a anúncios de uísque 24 horas por dia e jamais beber uísque. Você não vai a um restaurante porque viu alguma publicidade sobre ele, mas porque algum amigo o indicou, por meio do boca-a-boca.Na verdade, considero que, quanto mais marcas há, mais os gostos se individualizam.O universo do hiperconsumo desenvolve a multiplicidade de gostos individuais.

FOLHA - O surgimento da sociedade de hiperconsumo está ligado à ascensão de uma "lógica igualitária" -como o sr. diz em seu livro-, criada pela democracia?
LIPOVETSKY - Sim, mas lógica igualitária não significa uniformização, mas, em seu sentido mais profundo, o direito de cada um à felicidade e ao consumo. Isso significa que, mesmo que não se seja rico, pode-se viver bem. Hoje pode-se viajar de avião ao lado de quem tem um nível de vida diferente do seu, que pode ter muito mais dinheiro que você. O que não significa afirmar que as diferenças desapareceram -isso seria ridículo. Mas também não significa dizer que o mundo de pobres e ricos seja estanque. Hoje mesmo as classes desfavorecidas têm acesso ao consumo -e isso muda tudo. A sociedade de hiperconsumo ajudou a encurtar as diferenças entre as classes sociais.

FOLHA - Por que o sr. diz que a sociedade de hiperconsumo é marcada por uma "feminização"?
LIPOVETSKY - Práticas que outrora eram privilégio das mulheres -como a moda e a cosmética- hoje cada vez mais se integram ao universo masculino. Em um sentido mais amplo, assistimos a uma feminização do design. As formas agora são mais doces, mais maternais e menos agressivas. Isso talvez seja a expressão de uma sociedade mais ansiosa, que acredita menos na modernidade e que deseja um bem-estar imediato. Pois as formas antigas eram uma espécie de profissão de fé na modernidade. Havia um esforço em destruir a tradição, enquanto hoje não se deseja destruir nada, mas, antes, conservar tudo. Hoje as formas pretendem transmitir paz, serenidade, razão pela qual o modelo dessa sociedade não é Dionisos, mas o zen.

FOLHA - Mas um zen com ansiedade. Isso não é contraditório?
LIPOVETSKY - Sem dúvida.

FOLHA - Esse é o pós-hedonismo?
LIPOVETSKY - Exatamente. Um hedonismo ansioso.

FOLHA - O sr. fala de uma "cultura preventiva" do consumidor. Isso é uma relação um pouco paradoxal com o prazer da compra, não? O que é exatamente isso?
LIPOVETSKY - Esse é um grande problema, que tem se desenvolvido, digamos, há cerca de 20 anos. É o que chamo, para me divertir, de "Dr. Knock", referência a uma peça de teatro em que os personagens estão perfeitamente bem, gozam de boa saúde, mas vão a um médico que lhes diz: "Você estão com problemas, as coisas não vão bem". E eles saem dali "doentes", desestabilizados. É o que vivemos hoje. Por exemplo, você não pode se expor ao sol, porque causa problemas, você não pode beber Coca-Cola, porque tem muito açúcar, você não pode comer muita carne, porque tem gordura, você tem que fazer exames médicos, você não pode fazer sexo sem camisinha, porque pode pegar Aids...

FOLHA - Mas essa preocupação não é boa?
LIPOVETSKY - Certamente. Mas isso paralisa o hedonismo, porque você instala a dúvida, a desconfiança, o medo, que se torna algo permanente nas existências dos indivíduos. Nos anos 50, as pessoas comiam e tomavam banho de mar tranqüilamente; hoje, você precisa verificar se a água não está poluída, se a comida tem produtos geneticamente modificados, que podem provocar câncer. Não é uma crítica o que faço, mas o fato é que, simplesmente, vivemos em uma civilização da prevenção, que é o contrário do dionisíaco.

FOLHA - É um exemplo de hedonismo fraturado?
LIPOVETSKY - Sim. Eu diria que não vivemos o dionisíaco; apenas consumimos o dionisíaco.