segunda-feira, julho 07, 2008

Da lotérica à escola


DE Aldo Nascimento

Posso falar minha felicidade, legal? Minha felicidade...
acho que não tem mais jeito de eu ser feliz, não tenho
mais ninguém, não tenho pai, não tenho mãe, não
mais porra nenhuma
.”
A fala de um menor de rua no início do filme Ônibus 174

Na semana passada, um adolescente de 17 anos e outro de 12 assaltaram uma casa lotérica em Rio Branco. Usando a mãe e o filho de 2 anos como escudos, o mais velho refugiou-se em uma escola pública

Quando esse fato chegou aos meus olhos na forma de texto jornalístico, logo associei o adolescente de 17 anos ao protagonista do filme Ônibus 174, Sandro Rosa Nascimento, de 22 anos. Na época, quem leu os jornais ou assistiu à notícia pela TV, sem dúvida alguma, reagiu diferente após ter visto o belíssimo documentário de José Padilha

Por meio dos jornais, Sandro foi notícia, sensacionalismo; elemento submetido a uma linguagem ordinária, funcional, imediatista. No cinema, entretanto, sua vida nos comove, promove reflexão. A arte cinematográfica devolve a Sandro sua condição humana e social. O texto jornalístico “cobre o fato” e oculta a verdade. “O fato é um aspecto secundário da realidade”, escreve Mário Quintana [1906-1994]. Ignoremos a vulgaridade espetaculosa da imprensa

Dois adolescentes que não pertencem a facções, a quadrilhas. Não são profissionais do crime. Quero dizer com isso que me recuso a acreditar que esses garotos tenham o sotaque da violência carioca. Aqui, em Rio Branco, os que vivem à margem da lei não degolam policiais militares na rua. Mermão, os caras não era malandro, era dois pregos que entrou na parada errada, sacou?

E lá estavam os dois buchas na casa lotérica. Megassena acumulada em R$ 23 milhões, mas o de 17 anos arrisca um palpite em outro jogo: 38 na cabeça... de uma mãe e de um filho de 2 anos. Por que não contar também com a sorte? Mas pobre é azarado. Os tiras chegam para limpar a área, pobreza, ainda mais armada, suja a praça bonita, reformada. Difícil é reformar a desigualdade social.

A polícia cerca. Sandro arrasta os reféns a uma escola pública. Onde se está seu boletim escolar? Mas qual a importância do boletim escolar de um pobre? Nenhuma. O que importa, agora, é o boletim de ocorrência

Como no documentário Ônibus 174, o Sandro daqui não mata, não se mata; não é assassino, suicida. Apostar no 38 na cabeça foi um blefe. Preso, a multidão ecoa seu delírio de “mata, mata”. Repórteres buscam o melhor ângulo, mas, como não é função de jornalista abstrair fatos, a matéria os mantém na superfície da realidade

O espetáculo termina. O assaltante da casa lotérica é jogado no camburão sem saber que, só com R$ 3, poderia ter tido o mesmo destino de um pobre de Santa Catarina, ganhar R$ 23 milhões na megassena. Que azar! O jeito então é, quando sair da cadeia, entrar não em uma escola pública, mas em uma particular, sempre as melhores no ranking do Enem

Agora, longe das belas praças, dos prédios reformados, o espaço público está limpo, tudo voltou ao normal em Rio Branco, porque, quando o pobre permanece resignado em seu devido lugar, a ordem está em paz. Quando não permanece, morre: o Sandro do Rio de Janeiro foi assassinado por policiais, o Sandro de Rio Branco jamais renascerá na sociedade acreana.
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Ronda Gramatical

O sonho de Salvatore Cacciola era ser policial ortográfico para corrigir os erros dos pobres. Um bem-nascido recebe ótima educação. Por causa disso, ficou em primeiro lugar no concurso da Polícia Gramatical. Na semana passada, o capitão Cacciola ouviu algo desagradável quando passava em frente a uma casa lotérica de Rio Branco. “Me dá o dinheiro que tá aí, porra!”, ordenou. Cacciola logo percebeu que era um elemento com pouca escolaridade. Sacou a Gramática de Celso Cunha e atirou a colocação do pronome oblíquo na LÍNGUA do delinqüente pronominal. No boletim de ocorrência, o policial retificou, escrevendo que “o inculto deveria ter dito ‘dê-me o dinheiro que está com a senhora, por favor!’”.