segunda-feira, julho 08, 2013

Jorge Viana, um homem cordial

  1. Em 1941, Stefan Zweig publica Brasil, um país do futuro, cinco anos após a publicação de Raízes do Brasil. Se o suíço leu a obra do brasileiro, não posso afirmar por não ter lido nenhuma referência bibliográfica sobre tal encontro. Na parte “Um Olhar sobre a Cultura Brasileira”, Zweig adjetiva o brasileiro como “um tipo quieto, sonhador e sentimental”. Somos cordiais a ponto de causar espanto ao estrangeiro, porque, segundo ele, trata-se de uma forma há muito


    tempo esquecida pelo europeu (2006, p. 130). Na condição de quem vem “de fora”, Stefan Zweig foi afetado por essa cordialidade ao registrar em seu livro que, em todos os meses que passou aqui, jamais viu uma grosseria. Mais: o estrangeiro é um hóspede bem-vindo e quase um amigo. Deve ser observado que o autor escreveu sob o período político do presidente Getúlio Vargas, o pai dos pobres.
  2. Assim, no livro de Stefan Zweig, não há, entre o europeu e o nativo, distância, separação, não existe o estranhamento. O estrangeiro não é o estranho. Porquanto não há esse estranhamento, Stefan Zweig é bem-vindo, quer dizer, familiarizou-se. Como escreveu em Raízes do Brasil, a familiaridade ou a cordialidade foi “a que mais exprimiu com mais força e desenvolvimento em nossa sociedade” (1992, p. 106). Entendamos, entretanto, que ser cordial, segundo Fernando Henrique Cardoso em seu artigo Livros que Inventaram o Brasil, não significa ser “afável”, mas “uma maneira de reter vantagens individuais” (1993, p. 29).

  3. Antes de Sérgio Buarque ter publicado sua obra em 1936, Gilberto Freyre apresentara Casa-Grande e Senzala três anos antes, em 1933. No sentido de íntimo, a cordialidade já penetrara em suas páginas: patriarca da casa-grande e proprietário da senzala, o senhor-de-engenho despe-se para, entre as coxas negras de sua escrava, procriar bastardos. Ao mesmo tempo em que a negra é mercadoria para ser comprada em espaços impessoais (mercado, praça pública), onde o patriarca branco e cristão sustenta a imagem da polidez, da formalidade, o sexo de sua escrava excita e relaxa hierarquias, deprava o senhor, colocando a ordem social cristã do avesso. Na intimidade, com toda sua polidez (des)coberta, desalinhada, desarrumada, o escravagista perde as boas maneiras da civilidade. Esse mesmo senhor, cujas raízes do engenho são profundas e absolutas, é o mesmo que ocupa os espaços políticos, legislando ou executando leis. No engenho, núcleo de numerosa família de parentes, de agregados e de escravos, o patriarca a tudo senhoreava, a ponto de confundir o privado com o público (VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas, 1997, p. 223).

  4. Que causa histórica desdobrou-se no conceito de “cordialidade”? Como “toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos” (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, 1992, p.41), pergunta-se: qual base ainda sustenta essa estrutura? Resposta: as raízes rurais. Por causa da concentração de terra nas mãos de tão poucos, o senhor-de-engenho adquiriu um poder absoluto, e seu engenho bastou-se a si mesmo, chegando haver nele capela onde se rezavam as missas, além de ser provido de todo o necessário. Seu poder amplia-se ainda mais por ser o engenho, esse domínio rural, espaço onde o poder patriarcal é ambíguo por “miscigenar” o corpo privado com o corpo público. Usando um conceito de Oliveira Viana, o engenho é um clã pelas graças cristãs das relações familiares que pulsam nele. Por meio dessa relação, os partidos políticos serão nada além do que consequência natural dos clãs eleitorais, que ocupam os cargos públicos do país e “plantam” nas instituições a mentalidade do mundo rural.

  5. Em A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil, de Adalberto Cardoso, a mentalidade rural se transfere para “o Estado antissocial”, onde proprietários de terra (oligarquias estaduais que criam leis) olham para suas negras e para seus filhos bastardos como inimigos na República Velha. O poder é ambíguo. Com a República Nova, a nação agora tem um líder político familiar, cordial, carinhosamente chamado de “o pai dos pobres”: Getúlio Vargas. Em 1º de Maio de 1941, no estádio do Vasco da Gama, o presidente discursa em defesa da fixação do homem no campo; sem falar, porém, de uma reforma agrária (ADALBERTO. 2010, p. 212). Como pai, como imagem que protege e emociona multidões com seu discurso acolhedor e protetor, Vargas, esse homem carismático, não busca conflito social em uma nação onde 70% de brasileiros vivem no campo e menos de 3% deles é proprietário de terra. Como escreveu Stefan Zweig, “não está na natureza do brasileiro [...] entrar em confronto” (2006, p. 132).
  6. Por causa de seu discurso antipático ao imaginário cordial brasileiro, o PT, nas últimas campanhas eleitorais de Lula, alterou sua imagem de antipático, porque, uma vez no poder, acreditava-se que a desordem social e econômica seria o nosso destino. O PT raivoso cede lugar então ao “Lulinha paz e amor” ou, se quiser, ao PT cordial. Mas não tardou a ambiguidade. Prometendo fazer as reformas estruturais necessárias à nação, o PT de hoje, no entanto, nunca mais falou em taxar os ricos. A outra face da cordialidade “paz e amor” comprovou-se no primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, e frei Betto registra em 14 de agosto de 2003, em Calendário do Poder, seu desalento com o governo. “Não é o que eu esperava ou sonhava” (2007, p. 173). Ao longo do livro, fica claro que Lula não veio para promover transformações estruturais por causa de isso implicar rupturas. Em 18 de agosto de 2003, numa segunda-feira, frei Betto escreve que “sempre que há uma discussão, Lula prefere a conciliação” (2007, p. 174). A reforma agrária não surge. O Fome Zero fracassa. Consequências do “paz e amor” da cordialidade.    
  7. Como se isso ainda não fosse o bastante, o Legislativo, conforme matéria publicada no jornal O Globo, em 9 de junho de 2013, é “Partido da Família S/A – com verba pública do fundo partidário, políticos empregam parentes em legendas”. No texto do jornalista Chico de Gois, aparece o termo “clã”, por exemplo, no PMDB, no PSDB, no Partido Trabalhista Cristão (PTC, que já foi Partido da Juventude), no Partido da Reconstrução Nacional (PRN), no Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), no Partido da Pátria Livre (PPL), no Partido Trabalhista Nacional (PTN), no Partido Republicano Progressista (PRP), no Partido Trabalhista do Brasil (PT do B).
  8. O clã familiar cria o partido a fim de que parentes ocupem cargos na direção. O contribuinte, por meio do fundo partidário (cerca de R$ 300 milhões ao todo), paga muito bem a tios, a esposas, a primos, a pais, a cônjuges. José Levy Fidelix da Silva, do PRTB, é muito dedicado à família, empregando-a toda à custa do erário. Daniel Tourinho, presidente do PTC, empregou pai, dois filhos e duas irmãs. Tourinho recebe R$ 4.486 como verba de representação, além de mais de R$ 12 mil mensais, a título de “serviço técnico profissional”. Além do fundo, Tourinho, quando candidato a deputado federal pelo Rio de Janeiro em 2010, destinou maior quantia para a sua campanha: R$ 427 mil.
  9. Nas eleições de 2002, Lula falou de uma reforma política que levasse em conta a fidelidade partidária e o fim das legendas de aluguel. Toma posse em 2003. Faz 10 anos. As leituras de Oliveira Viana (clã), de Sérgio Buarque de Holanda (cordial) e de Adalberto Cardoso (antissocial) são atualíssimas.