domingo, junho 12, 2016

O EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO


Quando abrimos as primeiras páginas do apóstolo João, lemos que “no princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Princípio. Verbo. O que é o princípio? O que é verbo? Antes de qualquer coisa, saibamos que esses dois termos são as traduções latinas dos gregos arkhé (ἀρχή), “princípio”, e lógos (λόγος), “verbo”. Embora tenhamos em são João o termo arkhé, este texto seguirá só com lógos.                                                                 .          

Antes de buscarmos o significado de verbo em português, a origem desse termo é grega, ou seja, “verbo” passou pelo filtro da cultura romana. Por causa dessa passagem da língua grega para a língua latina, perdeu-se o sentido original, pois se perdeu a vida da palavra.
                                                                                                   .
Segundo a obra De Magistro, de Agostinho, verbo afirma “tudo o que é proferido por uma voz (vox) articulada com uma significação percute (verberare) no ouvido para ser percebido e é confiado à memória para ser conhecido (nosci)”. Nesse aspecto, verbo é palavra; mas entendamos “palavra” enquanto sentido original de “palavra interior”, porque, na obra De Trinitate, ainda de Agostinho, “verbum não abandona a alma daquele que fala”. Palavra é, portanto, o que vem do íntimo para o outro que me escuta, sabendo que, entre quem fala e quem ouve, só há encontro por pertencer à natureza da palavra a ordem.                                              .

“Lógos também foi traduzido para o latim como “ratio” ou “razão”. Mas qual a origem de “ratio”? Razão designava “a conta que o escravo mantinha com seu dono em um livro-razão”. Então, “ratio” pertence à ordem dos números, ou seja, por “ratio” derivar do verbo latino “reor”, a conjugação é “eu conto, eu cálculo”. Infelizmente, nós herdamos da cultura romana a ideia de razão, tendo sido sepultada a ideia de razão segundo os gregos.                                                                                                             .
Em grego, “lógos” não tem sua origem em livro-razão, objeto do comércio, do negócio, onde o número é precisão ou coisa em si mesma. Em grego, “lógos”, originado e pensado por Heráclito de Éfeso (544?-474? a.C), possui beleza metafísica que, embora tamanha beleza tenha sido muito alterada ao longo de séculos, chegou a nós pelo pensamento católico
                                                                                                         .
Primeiro a pensar no cristianismo a relação entre o divino e o humano foi Orígenes (185-253 d.C), discípulo de Clemente de Alexandria (150-215 d.C). Ainda que Heráclito tenha sido o primeiro a pensar “lógos”, Orígenes foi influenciado pela noção estoica, que é a ordem racional do mundo, ou seja, “lógos” é força de unidade na dispersão, princípio divino que vive nos homens, divinizando-os. Jesus é o “Lógos”, ou seja, sua natureza é dupla, divina e mortal, infinita e finita, imanente e transcendente, visto que “Lógos” é fonte das duas naturezas de Jesus Cristo. A beleza e a profundidade do pensamento de Orígenes, podemos encontrar em “Tratado sobre os Princípios”, páginas originárias dos pensamentos de Hegel (1770-1831) e de Feuerbach (1804-1872) a respeito da natureza dupla de Jesus.

Aldo Bourdieu
(língua.portuguesa@uol.com.br) é professor de Filosofia, de Sociologia, de Literatura, de Religião e de Língua Portuguesa.