segunda-feira, agosto 04, 2008

A Paixão sob o domínio da Razão

Paixão
De Aldo Nascimento

Acolho em minha biblioteca palavras escritas há 300 anos antes de Cristo. Diferente delas, serei lembrado no máximo, quem sabe, em uma missa de sétimo dia para depois o tempo pulverizar meu nome. Mas palavras resistem ao tempo na minha biblioteca, celeiro onde posso prover minha alma.

Ir aos clássicos, porque eles vigiam palavras universais e atemporais sobre as relações humanas, por exemplo, paixão. Em A República, capítulo 4, esse secular livro pergunta se “não compete à razão governar, uma vez que é sábia e tem o encargo de velar pela alma toda, e não compete à cólera ser sua súbdita e aliada”. Para Platão, paixão e cólera igualam-se, equivalem-se. Apaixonar-se significa estar enfermo, estado em que o humano perde controle sobre si mesmo à medida que a razão esmorece. A fim de evitar tamanha fraqueza, a paixão deve se submeter à razão e, uma vez subjugada, ser sua aliada.

Assim, quero dizer, unidas, elas “dominarão o elemento concupiscível e hão de vigiá-lo, com receio que ele, enchendo-se dos chamados prazeres físicos, se torne grande e forte, e não execute a sua tarefa, mas tente escravizar e dominar uma parte que não compete à sua classe e subverta toda a vida do conjunto”. O elemento concupiscível é a cobiça, isto é, cupido, desejo ardente da carne que ambiciona, que cobiça a matéria.

A razão deve acometer contra esse excesso, porque o desejo carnal desarmoniza a cidade, o corpo. Aliada à razão, a paixão não causaria esse excesso, essa desmedida, essa enfermidade. Na Idade Média, a Igreja, que edificou seu mundo com as paredes do platonismo, considerava a paixão a causadora de um desarranjo fisiológico porque tudo começa com a crença de que o comportamento do indivíduo é determinado pela qualidade e pela quantidade do calor de seu corpo. Tal calor não provém do fígado ou do cérebro, mas do coração

Agora, retiro de meu celeiro grãos do livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, onde razão e paixão marcam o duelo verbal mais belo da literatura brasileira. Iohána, o pais, representando a austera razão, alerta o filho André, representante da paixão, do perigo do sentimento que altera o ritmo cardíaco, transforma o calor do corpo.

Ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: (...) acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista."

Por manifestar seus sintomas no corpo, a paixão foi associada à doença, cabendo à medicina ou à ciência encontrar a cura para esse mal. Batimento cardíaco acelerado, corpo caloroso, mãos suadas e perda do juízo, por exemplo, manifestam-se por causa de uma secreção da bile negra. Em fins do Renascimento, dois livros buscam encontrar resposta para os sintomas do sentimento: O Antídoto do amor, de 1599, e A genealogia do amor, de 1609. O amor erótico era o resultado dos humores queimados pela paixão, podendo ser explicado somente em termos de patologia. Em grego, páthos é sentimento e também dor

Depois desses dois livros, a ciência ainda racionaliza a paixão. No livro Por que nos apaixonamos ­– como a ciência explica os mistérios do amor, de Lucy Vicent, a emoção dos apaixonados é conseqüência dos feromônios nas vias nervosas que atingem zonas do cérebro responsáveis pelo comportamento sexual e pelas emoções. No capítulo 4, o autor escreve que “o apaixonado é como o taxicômano: precisa de uma dose cada vez maior para assegurar a liberação de endorfinas no cérebro, das quais ele se tornou dependente.” O mensageiro do amor deixou de ser o deus Eros, um mito, para ser uma rede química, a matéria. Por esse motivo, a ciência ocupa veículos de comunicação de massa para sentenciar que a paixão (ou reações químicas, antes era a bile negra) dura entre 2 e 3 anos

Depois que Platão escreveu A República, séculos e séculos se passaram, mas a razão permanece fiel ao ato de dominar a paixão. Antes, com o pensador grego, cólera. Hoje, esse sentimento ainda permanece preso ao biológico, à matéria.

COMO USAR A LÍNGUA

1. Junto a/ junto de (= perto de) são sinônimos e invariáveis. “Os dois chutes passaram junto à trave.” “Os reservas estão junto da comissão técnica.” “Os hotéis ficam junto ao viaduto.” “As casas estão juntas da farmácia.”

2. Devemos evitar o uso de junto a com outro sentido que não seja de “perto de”: “Ele está preocupado com seu prestígio junto à torcida.” É preferível: “com a torcida.” “O governo solicitou um empréstimo junto ao Banco Mundial.” É preferível: “no Banco Mundial.”

Do livro O Português do dia-a-dia, do prof. Sérgio Nogueira Duarte da Silva