domingo, dezembro 28, 2008

Do gado da reserva extrativista ao gado do rodeio

Primeiro, ouvi o que o jornalista Antônio Alves expressou quando recebeu o Prêmio Chico Mendes. Depois, com muita atenção, li o texto. Em blog e em jornal, propagou-se a idéia de que Antônio Alves é uma voz crítica dentro do poder, até Altino Machado concordou com isso.

Se fosse voz crítica, o bom Toinho Alves não estaria no poder. Como permanecer nele se sua fala se opõe à pensão vitalícia dos governadores? Como permanecer nele se sua fala propaga que não houve revolução na educação acreana? Sobre pensão e pseudo-revolução, silêncio.

Quando digo voz crítica, refiro-me a uma voz que emite rupturas. No poder, com seus amigos, Toinho não promove rupturas, mas se conserva no poder para pagar a conta de luz, as compras do mês, o crediário, para receber prêmios - coisa de que não gosta, disse certa vez.

Quando os senhores falarem de voz crítica, por favor, citem Frei Beto, por exemplo. Ele saiu do poder e revelou em livros o que blogs e jornais não publicam.

Neste pequeno mundo chamado blog, deixo aos teus olhos meu último artigo deste ano. Queria muito, minha mãe, que a senhora o lesse para comentá-lo, porque a senhora é a única que acessa minhas vãs palavras. Meu sonho desde criança, a senhora sabe, era ser um Altino Machado para não ser acessado só pela senhora. Paciência, sou um fracassado.














Do gado da reserva extrativista ao gado do rodeio
De Aldo Nascimento

Por sua natureza, o Estado precisa inventar heróis. No Acre, seria diferente? Entre árvores copadas, em plena Floresta Amazônica, surge um herói com farda e patente para militarizar a virtude. Outro herói emerge entre árvores depois que os gringos o projetaram para o mundo. Plácido de Castro, idealizado pela propaganda de Estado, e Chico Mendes, modelado pela comunicação de massa, não só se opõem como também deformam o que Mário de Andrade e Oswald de Andrade pensaram sobre a identidade de um povo, sobre a imagem de uma cultura.

Por meio de seus heróis, o Estado quer convencer, educar, disciplinar, ordenar e, por outro lado, tende a propagar uma ideologia que pode aborrecer ou irritar. A cultura do Estado é forçada, quer adaptar o público à sua cultura. Se tais heróis aborrecem, se eles irritam, é porque não foram germinados no solo fértil da cultura popular.

Zumbi dos Palmares, degolado em 20 de novembro de 1695. O negro jamais colocou seu herói em uma procissão cristã e nunca precisou do Estado ao longo da história para patrocinar sua lembrança. O passado do negro permanece intensamente vivo porque sua cultura, encarnada em seu corpo, dança, musicaliza, canta, veste-se e exporta moda, ou seja, sua cultura cicatrizou-se no modo ser, de existir, de falar.

Qual o herói do seringueiro? O Estado idealizou um. A comunicação de massa modelou outro. Mas onde encontramos a cultura do seringueiro encarnada no corpo social? Qual a dança do seringueiro? Qual a música do seringueiro? Qual o canto do seringueiro? Quais as vestes do seringueiro que exportam moda?

Por meio da Rádio Difusora, o seringueiro manda sua mensagem; hoje, porém, sua fala passa por uma limpeza. Se ele escreve em sua mensagem “Toin”, a rádio o corrige, o certo é “Toinho”. Em Cruzeiro do Sul, o professor-doutor Milton Chamarelli Filho chegou à conclusão em sua pesquisa de que a cultura da fala acreana está deixando de existir, eu acredito que seja por causa dos veículos de comunicação de massa. No caso da Rádio Difusora, que pertence ao Estado, a fala do seringueiro está passando hoje por uma assepsia: “Toin” é uma infecção lingüística. Assim, sem música que nos faça dançar, sem canto que nos faça sonhar, sem vestes que exportem moda, o seringueiro tem sua fala roubada, mas em troca recebe um herói modelado pelos veículos de comunicação de massa e outro idealizado pelo Estado.

Chico Mendes, segundo a cultura de Estado, é herói de um povo, e, por ser herói, um grupo político premia e premia-se; entretanto, na reserva extrativista que leva seu nome, seus ideais foram pro brejo, menos a vaca e o boi. O gado ri de nós, porque, enquanto sublimamos Chico Mendes, suas idéias pastam em sua reserva.

Esse, no entanto, ainda é o mal menor. Mal maior é quando a pecuária nos veste com suas botas, com suas calças justas e cintos largos, com suas blusas, com seus chapéus para o acreano José da Silva, que veio do seringal Redenção, ser chamado de cowboy. Ele ainda ouve música sertaneja e dança. Mal maior não é o gado na reserva, mas a pecuária transfigurada em cultura. Ele veio do seringal, é um jovem seringueiro, mas José da Silva encarna o modo de ser do rodeio.

O Estado pode inventar heróis, idealizá-los para nos convencer, para nos educar, propagando uma ideologia que aborrece e irrita por ser ela forçada e por querer adaptar o público à sua cultura pesada, mas os mitos que criam comportamentos são outros.

Depois que lemos Mitologias, de Roland Barthes, podemos afirmar que o cowboy é um desses mitos que, vindo da pecuária e oposto à cultura enfadonha do Estado, faz tudo para agradar, divertir, recrear. José Silva sai do seringal para ir ao rodeio porque o cowboy o despersonaliza como seringueiro para, em um segundo momento, repersonalizá-lo por meio da bota, da calça justa com cinto, do chapéu, da música sertaneja, da dança. Senhores, o gado na Reserva Extrativista Chico Mendes é mal menor. O mal maior é a pecuária agenciando a fantasia.

Heróis de um povo segundo o Estado. Leiamos Macunaíma, de Mário de Andrade. Leiamos Oswald de Andrade.