sábado, novembro 15, 2014

Um belo filme. Brinquemos.



Filme Doutores da alegria,
direção e roteiro de Mara Mourão.

Nesta segunda avaliação da disciplina Estética, este trabalho propõe a pensar o ato estético no belíssimo filme Doutores da Alegria, de 2006. Muito premiado no Brasil e no exterior, essa película, com duração de 1h37m49s, tem Mara Mourão como diretora e roteirista. O trabalho está secionado da seguinte forma: 1. Uma síntese; 2. O hospital e o palhaço; e 3. Nem Aristóteles e nem Descartes.

1.      Uma síntese

À medida que os créditos aparecem, um mosaico de palhaços conduz nosso olhar a um bobo que nos convida para o espetáculo. Inicia-se o filme. Uma menina está sentada no corredor do hospital. Em seguida, o movimento da câmera permite que o olhar nosso se desloque de cima do suporte de soro até a metade do objeto, e, na outra cena, o movimento continua no traço preto do lápis sobre o olho esquerdo do palhaço, permanecendo o movimento agora na trança de outra menina que surge andando depois em direção ao fundo do corredor. Um monitor cardíaco, em primeiro plano, emite seu repetitivo som; ao lado da máquina, uma criança em decúbito ventral, sozinha. Os objetos estão lá. Assim como eles, o som hospitalar também está como coisa. As crianças... estão só.             

Em outro espaço hospitalar, atores, ao som de violão, de flauta, de pandeiro, transformam-se em palhaços. Uma vez vestidos de fantasia, espalham-se: dois caminham entre desenhos infantis pintados nas paredes do corredor; outros dois descem escadas e, quando dobram à direita, a câmera lentamente detém nosso olhar a quatro telas que fazem lembrar o expressionismo do holandês Van Gogh. Com as pinturas, ouve-se o sorriso largo de uma criança - é como se as cores e o movimento intensos da arte estivessem agora encarnados na imagem dos palhaços. Enfermo no leito hospitalar, o menino Caio está feliz.              

            2. O hospital e o palhaço

O espaço do hospital é a extensão natural da ciência médica, isto é, ele é a higiene, por isso que suas linhas retas e seu monocromatismo, por exemplo, representam a limpeza do excesso. A fim de que esse espaço se mantenha sem erro, isto é, limpo, o tempo é função e objetividade, rigidez das horas que modela corpos. Se comparada a uma escola de arte, a pintura do hospital enquadra-se à pureza da matemática árcade, onde a relação entre significante e significado não é só equilibrada como bem ajustada. Além disso, por ser o espaço hospitalar a geometria da dor, o significante se contrai.

Antes, os loucos eram confinados em hospitais; no filme Doutores da Alegria, contudo, o por louco se libertou do hospital a fim de retornar a ele para tratar, com doses de estética, doentes e sadios. Quando digo tratar, restrinjo-me a um dos conceitos da estética, qual seja, o significante. Nas cenas iniciais da película, os atores, aos poucos, vestem-se de palhaço não porque eles colocam a blusa, a saia, a calça - o que seria comum, óbvio -, mas porque seus corpos acolhem cores, linhas, traços, em síntese, acolhem não só significantes como o desequilíbrio entre o significante e o significado.

O palhaço é o mensageiro desse desajuste, dessa assimetria. Por causa dessa inconformidade, dessa estranheza entre significantes e significados, os signos linguísticos do hospital, até então estáveis, retraídos, ajustados e, por isso, bem comportados, veem seus significados migrarem de significantes para outros significantes, por isso a criança ri quando seringa é flauta. Portanto, a estética, amálgama entre significante e significado ou entre forma e conteúdo, desmancha o objeto, retirando da seringa sua função fixa para transformá-la em sentido estranho ou incomum a ela mesma. Dessa maneira, crianças são afetadas pelas paixões alegres por causa da natureza do palhaço, que é retirar dos signos do hospital a condição de objetos estáveis.                    

            3. Nem Aristóteles e nem Descartes

Por não ser prisioneira da lógica aristotélica e nem da cartesiana, a criança enferma deleita-se diante dos palhaços, porque são eles os únicos no hospital que encarnam paradoxos que alegram inocentes almas com o improvável: A não é igual e A e A é igual a B.


Mestra em psicologia e coordenadora do Centro de Estudo dos Doutores da Alegria, Morgana Masetti afirma no filme que os bobos não pertencem à lógica cartesiana: “
A realidade do hospital é transformada pelo olhar do palhaço porque não é cartesiano, onde as coisas estão mais divididas”.

O professor-doutor Yassuhiko Okay, vice-presidente da Faculdade de Medicina da USP, diz no final do filme que “
a medicina enxerga por fora e os doutores da alegria enxergam por dentro, por isso a medicina nunca será completa se não juntar o lado de fora com o lado de dentro e, portanto, ter uma visão integral do ser humano. A experiência com os doutores da alegria me mostrou o seguinte: que eles lidam exatamente com o lado invisível da realidade”.

Por causa da geometria rígida do espaço hospitalar e por ser esse espaço o lugar do sofrimento, esse
invisível de que fala o professor-doutor Yassuhiko encontra-se mais ainda retraído, e o médico não deixa de ser o anunciador da dor; porém, com ele, também surge o vazio. O palhaço, ato estético, também anuncia no filme o triste, contudo, diferente daquele que cura por meio do saber científico, não traz o vazio mas a vida.          

Embora sejam formados conforme os preceitos da ciência, psicóloga e médico concebem outra relação humana no hospital por causa do ato estético dos palhaços. Se a filosofia tradicional ou acadêmica se atém à pergunta e não à resposta, a filosofia do palhaço, que também não é apta a trabalhar com a resposta, “
se contenta em brincar com as perguntas”, como observa a atriz Beatriz Sayad, a palhaça Dra. Valentina. Aproximar essas palavras ao encantador Estética da criação verbal, obra de Mikhail Bakhtin: 

O ato estético engendra a existência num novo plano de valores do mundo; nasce um novo homem e um nosso contexto de valores – um novo plano do pensamento do homem sobre o mundo”.