sábado, janeiro 23, 2016

A MONARQUIA DE MOMO


De Aldo Tavares

Momo, sabemos, é rei, quer dizer, porque governa, ele representa a política de um reino que possui a força da transfiguração, no sentido de que a transfiguração recusa as restrições do que é funcional; nega os limites do que é ocupado pelas horas determinadas do trabalho. Ser súdito de Momo é perder, portanto, função determinada, é não estar ocupado. Uma vez em seu reino, todos se desocupam por causa da transfiguração da fantasia. Mas, para que a névoa da fantasia se disperse, a fechadura da porta ou da passagem entre realidade objetiva e máscara deve ser aberta com a chave. Para isso, com a mãe direita, o prefeito da cidade a entrega à mão esquerda de Momo. Mão direita e mão esquerda: se “a direita” é o lugar onde nasce o Sol (a Leste) e se “a esquerda” é onde ele se põe (a Oeste), o prefeito simboliza o governo diurno que, por meio da lei, cobra retidão e pune desvios; e Momo, o governo noturno que cobra alegria e não pune quem brinca.

Ao dizermos fantasia - palavra da mesma origem de fantasma -, a ideia refere-se à projeção de uma sombra, isto é, a sombra imita o modelo: se o braço direito é erguido, a sombra também o ergue, mas só que ergue o esquerdo, ou seja, aquele que imita é aquele que inverte. Como a palavra momo origina-se de mimesis, de imitação, pergunta-se: quem o rei Momo imita? Ora, se ele recebeu com a mão esquerda a chave do prefeito, se ele governa depois de o Sol se pôr, se Momo é um ser político (“o que deve ser comum a todos”) -, o reinado momesco imita o poder sério, imita o poder oficial, e, porque imita, Momo inverte o que é sério, coloca do avesso o que é oficial. O rei imita o prefeito. Seu reinado imita a política da cidade.

Mas o que é o avesso? Ora, o avesso da folha é “a parte de trás”, a parte ocultada; é também o verso da folha, o que, para ser visto, precisa ser virado, pois está coberto pela superfície visível da parte frontal da folha, o anverso. Não vemos o verso da folha, óbvio, por ela estar coberta, ocultada ou ainda por estar sombreada pela superfície. Sendo assim, por ser Momo, por ser aquele que imita, seu reino não só inverte como também des-cobre o que a superfície do dia oculta, sabendo que oculta pelo fato de o dia, que é ocupação, conter ou inibir o excesso. No entanto, por ser filho da deusa Nix (Noite) ou de uma mãe que possibilita sonhos, fantasias, fantasmas, Momo, um desocupado divino, é demasiadamente gordo, porque seu corpo representa o excesso ofertado pela alegria, pela máscara, pela loucura (folião), pelo brincar, pelo riso. Momo é a fartura do encontro. Momo destrona o que a luz do dia represa.



Opondo-se ao discurso oficial do prefeito ou à linguagem que regula as desigualdades sociais, Momo promove a ascensão do avesso, porque faz emergir a força subversiva da fantasia, que, após ter recebido a chave do prefeito, estimula a circulação do riso, da brincadeira, da paródia, do escárnio, da máscara, do louco, da festa – palavras que foram excluídas pela disciplina do trabalho, pelo poder sério, pelo poder oficial.
Se o trabalho arranca o suor do rosto, se é sacrifício e exploração, a festa de Momo rebaixa quem domina e explora, visto que, por ser festa,  iguala todos por meio do ato estético de brincar, e, por causa do brincar, a diferença entre ricos e pobres cede a uma louca confraternização. “A loucura tem uma força maior do que a razão, porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com uma chacota”, nos ensina Erasmo de Rotterdam em O Elogio da Loucura. “Que é, afinal, a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência”.                                                                       .

E quem mais vive nesse reino da transfiguração? Nessa monarquia fantasiosa, sentado à esquerda de Momo, encontra-se a figura do Bobo, palavra que vem
provavelmente do latim balbus (“aquele que pronuncia mal, gagueja”), porque o Bobo sabe que a razão “é erro ou pobreza, porquanto, ante o mistério do mundo, não sabemos senão balbuciar”, escreveu Régis Jolivet em Tratado de Filosofiai, volume 3.

Houve época em que o Bobo sentava-se à esquerda do rei, ao lado de quem rege, de quem governa, organiza; o Bobo sentava-se ao lado do centro, do eixo, da linha reta; sentava-se ao lado esquerdo do cardo. O Bobo, portanto, imposturava no (seu) ponto cardeal, à esquerda do ponto fixo, isto é, ele transbordava o lugar a oeste do rei, onde fica o poente ou onde se declinam as metáforas do Sol. Após um dia de cansaço, dia de trabalho injusto a serviço de quem im-põe, o Sol se declina para que a noite acolha e cubra os corpos de descanso, de sono, de sonho, de fantasia, de sombra. A palavra oeste (à esquerda) significa “noite”.

Já sabemos que estar à esquerda é estar no poente, o que ainda não sabíamos é que esquerda vem do grego aristera, etimologicamente “excelente, ótimo”, uma vez que aristera se prende ao superlativo aristos, “o melhor, o mais nobre, o exímio, o magnífico”. Ora, se o Bobo eleva-se à medida que o Sol se põe, ao cair da luz, justifica-se então o porquê de o bobo ser excelente, pois, à proporção que o dia se retira de cena, o que se encontrava retido em si mesmo por causa da luz, aos poucos, excede-se. Quando dizemos que ele é excelente, reconhecemos que não só se excedeu como se excedeu, no caso do Bobo, com “graça”. Por não estar à direita da ordem fixa do rei, o Bobo é aquele que, não agindo por conveniência, não estando de acordo com a aparência do dia, senta-se à esquerda de quem governa para se exceder e, excedendo-se, ouve aqueles que se excederam à noite em suas fantasias, delírios oníricos em desacordo com a ordem do dia.


                                                                               .

A palavra direita em latim é dextera ou dextra, podendo se aproximar de decet por etimologia popular, que significa “o que é conveniente”. Dextra tem a mesma raiz em grego, deksiá, cuja ideia é “de bom augúrio, favorável”. Enfim, se o bobo não se posiciona à direita, é porque não representa, por não se exceder, a segurança do leste - do grego eós, “aurora, alvor do dia”; e do latim oriens, “o que nasce”. Por isso, ele se encontra à esquerda, porque o Bobo representa, ao se exceder, perigo que se manifesta por vir do ocidente - do latim occidens e do grego disi, “onde morre o Sol”. Mas por que perigo? Sendo rebento da mãe Noite que atravessou a fronteira entre a escuridão e a luz para se sentar à esquerda de quem im-põe, o Bobo é o noturno que se fan-tasiou de Bobo a fim de, ocultando-se, des-cobrir, à luz do dia, o que o Sol oculta. O Bobo, sombra que impostura a fim de que a clarificada “verdade” das coisas diurnas, encobertas pela própria luz do dia, ponha-se do avesso.

Por causa desse perigo, em 389 d. C, Teodósio e Velentiano II eliminam as festas do calendário. Em 395, Arcadius proíbe no feriado nos dias de festas pagãs. Em 425, Teodósio e Velentiano II proscrevem divertimentos, comédia e circo no domingo e nos dias de festas religiosas. O Concílio de Cartago, em 398, excomunga aqueles que deixam a igreja para ir a espetáculos em dias de festa. O Concílio de Tours, em 567, condena as torpezas pagãs que acompanham as festas de fim de ano, que substituíram as saturnais e passaram a ser chamadas de festas dos loucos; o de Toledo, em 633, reitera a condenação. Tantos interditos só denunciam o quanto perigoso foi nesses anos o excesso político da fantasia, não conseguindo a Igreja, mesmo com tais proibições, subtrair a Festa do Bobo. Isso, porém, não indica que o riso tenha recebido licença dos sacerdotes para manifestar sua liberdade. O que ocorreu é que, não podendo conter a Festa do Bobo por meio de interditos, a Igreja, ainda que neoplatônica, acolheu a força híbrida do Bobo a fim de debilitá-lo ao se fundir com a seriedade do sagrado. A alegria do Bobo, entretanto, cruza os séculos por não ter se fundido ao sagrado.

M
as o que é essa alegria? Por se recusar ao que é ajustado, a alegria do reino de Momo é o desajuste do excesso, da fartura, do inexato, da ilusão, do falso, do irreal. Eis, portanto, para ser alegre, ele: o ato desnecessário, sem função, por isso, desinteressado, opondo-se, pois, ao “ocupar posição, matar de cansaço”; e mata-se de cansaço porque existe na ocupação o sentido do “trabalho de assentar”. A alegria do Bobo, que tanto ri do “trabalho de assentar”, é desinteressada por saber que “trabalho” origina-se do latim trĭpālĭs, termo que significa “instrumento de tortura, de torção”. Por isso, para ser alegre, ela: palavra que, expressada pelo Bobo e por Momo, é a ilusão desinteressada, qual seja: im-postura. Por não desejar pôr, o bobo é im-postor; por não desejar (se) ajustar, o rei Momo é im-postor. Eles, que não se matam de cansaço para ocupar posição porque não trabalham para ajustar e muito menos para se ajustarem, não usam o instrumento que torce para ocupar o espaço. Para ser alegrar – esse afeto que nos expande, sentimento que nos alarga por ser encontro -, é preciso estar (des)ocupado. Bobo e Momo são dois desocupados. Nesse sentido, como não ocupa nenhuma posição na sociedade, a fantasia, que é livre, oferta-nos a nobre ilusão de nos sentirmos também desocupados. Fingir é fugir da ocupação. A alegria não quer, não pode e nem deve se ajustar ao instrumento de torcer para assentar, para ajustar, para acomodar, para fixar - por isso a monarquia de Momo é impostora e, para tanto haver a impostura, os súditos brincam... com a livre seriedade da alegria.


quinta-feira, janeiro 07, 2016

O ESTADO FAZ GREVE MELHOR DO QUE SINDICATO


Nunca conheci um sindicalista que abrisse a boca com o bom hálito da inteligência. A única forma de luta que conhece é a greve, mas, no Rio de Janeiro, por exemplo, o estado realiza uma greve na saúde muito "melhor" do que o sindicato.

Quando a saúde entra em greve como agora, visíveis são seus resultados imediatos. Corpos e mais corpos com suas dores são expostos, a greve da saúde é material, corpórea.

Porém, a "greve" da educação se estende por anos e anos porque não é visível; ela não para a cidade, pois, por não ser material a greve da educação, ela não pode ser chamada de greve.



A greve da saúde paralisa a cidade porque o médico e o enfermeiro não vivem da palavra, porque, se vivessem, não parariam a cidade, visto que a palavra é uma abstração, uma ideia, e ideias ou palavras não morrem visivelmente à porta de escolas. Palavra não é corpo material.

Por causa disso, a "greve" da educação, realizada pelo estado, ocorre de forma tão sutil que, mesmo a escola funcionando, a educação encontra-se em "greve".

Entretanto, como sindicalista é animal irracional que rumina capim ideológico, seu cérebro, em estado vegetativo - e digo vegetativo pelo fato de que é o aparelho partidário que o mantém vivo -, não difere a natureza do hospital da natureza da escola, por isso que, para esse cérebro, o trabalhador médico iguala-se ao trabalhador professor.

Para esse morto-vivo de inteligência, zumbi de ideologias, a escola é o seu cemitério, lugar onde se enterrou para ser candidato pelo aparelho partidário.

O estado apresenta greves bem "melhores".


quarta-feira, janeiro 06, 2016

Um belo autor

A PALAVRA

Reli dois livros de Giorgio Agamben ("Profanações" e "O homem sem conteúdo") e comecei a ler "A potência do pensamento".

Heidegger afirma que "filosofar é recomeçar" e, para isso, seu pensamento vai à raiz da palavra. O recomeço mora na palavra - Heidegger dominava, como homem do século XX, o latim e o grego.

Seguidor das trilhas do alemão, Agamben filosofa porque sabe que a palavra é recomeço. Em "O homem sem conteúdo", ele desorganiza um dos  conceitos de Marx, PRÁXIS.

Para isso, Agamben, que domina o grego, visita quem, primeiro, pensou a PRÁXIS, Aristóteles. Pensar relaciona-se à palavra e, se ela está doente, só a filosofia para recomeçar, isto é, só a filosofia para ir à palavra antes de ela ter ficado enferma por ideologia, por ignorância, por vulgaridade.

Em "A potência do pensamento", Agamben costura conceitos para pensar a linguagem, por exemplo, na parte "Língua e história", onde, além de Agostinho, de Benjamin, ele dialoga com Varrão. Eis um trecho (pág. 35):

"Uma vez que o homem só pode receber os nomes, que sempre o precedem, através da transmissão, o acesso a essa esfera fundamental da linguagem é mediada e condicionada pela história. O homem falante não inventa os nomes nem estes emanam dele como uma voz animal: pelo contrário, eles lhe chegam - diz Varrão - descendendo, isto é, através de uma transmissão histórica. Os nomes só podem nos ser dados, traídos."

A origem do nome nos escapa e, sem a origem, sem a fonte, não conhecemos a causa das coisas, o que os gregos chamavam de "arké".

FANÁ-TICO e POLÍ-TICO

Sem in(stru)ção, não existe escolha, a pessoa não sabe que não sabe escolher. Embora tenha in(stru)ção, a pessoa pode até escolher o erro, mas ele, por ter in(stru)ção, sabe o que escolheu.

Fanático tem "tico". Político tem "tico". Em grego, "tico" significa "derreter". Mas qual a relação de "derreter" com (FANÁ)tico e com (POLÍ)tico?

Se ignoramos a origem, não sabemos o que falamos no presente.


sábado, janeiro 02, 2016

Bobos e palhaços, origem religiosa

Quando muitos olham a alegria do bobo e do palhaço, não fazem a ideia de que ambos pertencem à manifestação de cultos religiosos.

Havia, portanto, na cultura religiosa, o brincar. Hoje, moderninhos que somos, perdemos a memória do religioso como jogo.

Ainda hoje. 

O religioso encarna o peso do sério, adquirindo a força da separação, da distância. Voltar às origens do religioso é entender o brincar.