segunda-feira, julho 21, 2008

Mictório

Fonte, de Duchamp

Podemos até adiantar uma hora, mas ainda permanecemos atrasados quando o assunto é circuito cultural. Podemos construir uma estrada em direção ao Pacífico, só que não estamos na rota do cinema nacional e muito menos na rota do teatro brasileiro e das exposições de arte.

Só agora, após 91 anos, os brasileiros puderam estranhar a arte de Marcel Duchamp [1887-1968] no Museu de Arte Moderna de São Paulo, espaço cultural que fica em meio à paisagem criada pelos jardins de Burle Marx, dentro de um parque projetado por Oscar Niemeyer.

O Masp recebeu uma das obras mais famosas de Duchamp, Fonte, de 1917, exposta pela primeira vez em Nova York, assinada com o nome R. Mutt. Trata-se de um mictório, isso mesmo, um objeto industrial por si mesmo na condição de arte. Quando afirmou na época estar “mais interessado nas idéias do que no produto final”, Duchamp tinha indicado uma trilha para pensarmos sobre Fonte

Mas que idéia existe de expor um mictório como obra de arte? O que vejo é que diante de nós não há mais a criação, mas a fabricação de um objeto como arte, mas, retirado do seu habitat natural ou normal, o banheiro masculino, provoca em nós estranhamento. Representante da arte pop, Andy Warhol também deslocou objetos do seu habitat natural para que pudéssemos estranhar o que seria normal, no caso de Marcel Duchamp, em um banheiro masculino. No Museu de Arte Moderna, o mictório não é mais familiar, mas é idéia que nos faz estranhar o que é normal, um objeto

Vivemos cercados de objetos, o processo industrial deposita em nós o desejo de consumi-los, a própria pornografia não deixa de ser uma fábrica de gozo na linha de montagem. No mundo das fábricas, há tão-somente a função do objeto, por isso o mictório - Fonte faz lembrar formas de uma mulher, mas como depósito da borra masculina

Quem ousaria urinar na arte de Rodin [1840-1917] ou de Camille Claudel [1864-1943]? Mas, na obra de Marcel Duchamp, o convite foi feito. Divisor de duas estéticas, existe obra de arte ante e depois de Duchamp. Hoje, depois de Fonte, arte não é para ser contemplada – ela é descartável, é coisa, objeto

Já que esse franco-americano expôs um objeto, sugiro aos teus olhos, leitor(a), a provocante leitura de “O sitema dos objetos”, de Jean Baudrillard. Debruce tuas pupilas sobre esse livro e saia dele, se for capaz, com outra noção do que seja uma rede de objetos

Ronda Gramatical

Ontem, às 23h23, a jornalista Anacréia apareceu morta na redação de um jornal acreano com um objeto direto cravado no cérebro. Segundo peritos gramaticais, antes da repórter morrer, houve uma briga no ambiente de trabalho entre ela e Regência Verbal.

“Anacréia sempre insultava Regência com ‘implicava em’ todo dia”, conta um colega de trabalho. “Mas ontem Regência perdeu a paciência.”

Quando Anacréia acabou de copiar um texto da internete e coloca seu nome, Regência Verbal atingiu seu cérebro com um objeto direto, mas, antes do golpe gramatical fatal, Regência expeliu seu ódio.

“Tome, sua maldita, não se usa preposição quando o verbo ‘implicar’ tem sentido de ‘dar a entender’”.

No IML, constatou-se algo de que se desconfiava: a jornalista era anencéfala. No sepultamento, no lugar de flores, amigos jogaram gramáticas em seu túmulo.