Um filme que se destina a expressar
a crença em Deus deve ser sempre altivo, belo, como é o filme “Jesus de Nazaré”, do cineasta Franco
Zeffirelli, de 1977. O mesmo, entretanto, não ocorre com “Deus não está morto”, do diretor norte-americano Harold Cronk,
porque, longe de ser uma película autoral, reflexiva, profunda, “Deus não está morto” não só constrange como
encolhe a inteligência e a sensibilidade humana.
Assim, por não ser altivo e belo,
por ser mercantilesco, por ser panfletário e por ser raso, o filme de Harold
Cronk compactua com o Mal e... com o mau gosto.
Para quem submete a crença em Deus a
um filme com tão baixa qualidade, rebaixar a Filosofia a ponto de deformá-la é
bem mais fácil. Se o diretor de “Deus não
está morto” intencionou um duelo entre Filosofia e Deus, precisam avisar a
ele que a Filosofia faltou ao encontro em seu filme. Como falar do duelo entre
Filosofia e Deus se não existe Filosofia em “Deus não está morto”? O professor de Filosofia Radisson (Kevin
Sorbo) não é professor de Filosofia. Aquilo nunca foi Filosofia.
O duelo elegante entre Filosofia e
Teologia está acolhido na Patrística Helênica (por exemplo, Orígenes), na
Patrística Latina (por exemplo, Santo Agostinho, Boécio), na Primeira
Escolástica (por exemplo, Pedro Abelardo), na Alta Escolástica (por exemplo, Santo
Tomás de Aquino, João Duns Escoto) e na Escolástica Tardia (por exemplo,
Guilherme Ockham).
Entre esses nomes – e poderia ter
citado outros -, destaco a bela escrita no livro “Tratado sobre os princípios”, de Orígenes, e as belas palavras na
obra “A consolação da filosofia”, de
Boécio. Nesses dois títulos, pulsa o diálogo inteligente entre a Filosofia e a Teologia.
No caso de Orígenes (185-253 d. C.),
ele se situa em uma época onde havia a supervalorização gnóstica do Novo
Testamento, e Clemente de Alexandria (150-215/17), a fim de se contrapor a essa
supervalorização, estabelece uma diferença e uma complementaridade entre os
dois Testamentos. E Orígenes? Ao afirmar a necessidade de uma leitura paralela,
aperfeiçoa a relação entre o Antigo Testamento e o Novo. Para ele, o Antigo é a
figura do Novo. Mais: o Novo Testamento é espírito, conteúdo; o Antigo, literalidade,
expressão retórica. Por ter sentido figural, o Novo é a promessa de coisas
futuras. Por causa disso, com Orígenes, nasce o “discurso teologal”, não sendo
mais discurso sobre Deus, mas sobre sua Escritura.
Com ele, fala-se em sentidos literal (corporal), moral (psíquico) e místico (pneumatológico) e daí o literal, o tropológico e o alegórico. Depois,
lentamente, essa tríade transformar-se-á na teoria dos quatro sentidos das Escrituras:
literal, alegórico,
moral e anagógico.
Mas qual leitura correta? Segundo
Umberto Eco, a leitura correta dos dois Testamentos legitima a Igreja como
guardiã da tradição interpretativa e é a tradição interpretativa que legitima a
leitura correta. As leituras que não legitimam a Igreja também não a legitimam
como autoridade capaz de legitimar as leituras.
Qual leitura então legitima? Embora
com nomes distintos, um tipo de leitura que já foi definida como tipológica foi privilegiada pela
hermenêutica de Orígenes e dos padres em geral. Por causa de suas ações e de
suas características, os personagens e os eventos do Antigo Testamento são lidos
pelo sentido tipológico como tipos, como antecipações, como prefigurações dos
personagens do novo. Essa leitura ou essa interpretação prevê que aquilo que é figurado (tipo, símbolo ou alegoria) é
uma alegoria que não concerne ao modo no qual a linguagem representa os fatos,
mas sim aos próprios fatos. Segundo Umberto Eco, trata-se da diferença entre allegoria in verbis e allegoria in factis. Enquanto palavra de
Moisés, ela não deve ser lida como dotada de suprassentido, embora se deva
fazer quando se reconhece que a palavra é metafórica. O que predomina é a allegoria in factis, porque são os
próprios eventos do Antigo Testamento que foram predispostos por Deus - como se
a história fosse escrita pela mão divina – para agir como figuras da nova lei. Anos depois, Santo Agostinho (354-430)
enfrenta de forma definitiva esse problema de alegorismo Escritural.
Para quem lê a palavra de Deus ou
para quem busca o sentido da palavra nas Escrituras, as concepções comuns e a
evidência do que se vê não bastam. A fim de demonstrar isso, de que tais
concepções e tal evidência são insuficientes, tomam-se testemunhos do Antigo e
do Novo Testamento e, por meio deles, confirma-se a fé pela razão. Mas, antes
de considerar as Escrituras como divinas, Orígenes apresenta o legislador dos
hebreus, Moisés, e o autor das doutrinas salvadoras do cristianismo, Jesus
Cristo.
Assim como Moisés, houve também muitos
legisladores entre gregos e bárbaros e, assim como Jesus, também houve mestres
que pregavam a verdade. Entretanto, somente Moisés e Jesus fizeram nascer em
outras nações o desejo de receber suas palavras.
Apesar do sacrifício, apesar da morte de
alguns, aqueles que se entregaram à Lei de Moisés e aqueles que aceitaram Jesus
pregaram a palavra em toda terra. Gregos, bárbaros, sábios, ignorantes, enfim,
nações e homens diferentes partilharam e disseminaram a mesma religião
anunciada por Jesus. Isso se encontra acima da força humana, e Orígenes, ao exemplificar
com a própria Escrituras (Mateus 10:18 e 7:22-23), comprova, com a profecia de
Jesus, a força divina acima dos homens.
Podemos dizer então que somente a
Palavra do Antigo Testamento e do Novo Testamento foi recebida por outras
nações e por pessoas tão diferentes, porque, embora alguns tenham morrido por
causa dessa Palavra, sua propagação por homens uniu nações, sábios e ignorantes
à religião anunciada por Jesus por causa de uma força acima desses homens, qual
seja, o próprio Jesus Cristo.
Nesses números, Orígenes, ao fundamentar por
meio das Escrituras a relação entre Antigo Testamento e Novo Testamento,
apresenta o que Umberto Eco escreveu em seu livro, que o Antigo é a figura do
Novo Testamento, ou seja, no Antigo Testamento, encontra-se a imagem do Novo.
Segundo Orígenes, o Profeta está anunciado, por exemplo, em Gênesis, em Isaías,
em Salmos, em Deuteronômio, formando uma linha textual ou um tecido em que cada
ponto se interliga a outro. No final da parte 5, ele retoma a ideia de força
divina sobre os homens, ao concluir que a audácia daqueles que levaram a
Palavra do Evangelho foi um ato sobre-humano porque Deus os dirigia, porque um
poder divino os protegia.
Orígenes retoma a divindade de
Jesus, afirmando que ela encontra-se no Antigo Testamento; que, antes da vinda
de Cristo, a inspiração divina das antigas Escrituras não era fácil de
demonstrar com evidência. Aqui, mais uma vez, há no Antigo Testamento a imagem
do Novo.
Pela primeira vez, Orígenes fala
dos não instruídos, dos que não leem o caráter sobre-humano de cada passagem
bíblica. Não há surpresa nisso, pois, no tocante às obras da Providência de
Deus, algumas são claras; outras, escondidas. As realidades terrenas, operadas
por Deus providente, não são claras como o sol e também não são claras quanto
aos acontecimentos humanos. A maneira como o Deus providente opera é claro quanto
às almas e aos corpos dos animais, porque nesses a causa e a finalidade são
encontrados por aqueles que se interessam pelos instintos, pelas imaginações e
pelas naturezas animais e pela constituição dos corpos. Mas a Providência de
Deus, que não é clara nas realidades terrestres e nos acontecimentos humanos,
não se enfraquece por causa da ignorância humana, pelo menos para aqueles que
creem nela. O mesmo ocorre com a divindade das Escrituras, ou seja, elas também
não são claras, mas não se enfraquece por causa da ignorância dos leitores,
embora essa ignorância (fraqueza) não seja capaz de ressaltar em cada uma de
suas expressões o esplendor escondido das doutrinas que está conservado numa
redação vulgar e pouco atraente. Aí, de forma brilhante, Orígenes cita 2Cor
4:7, mostrando que, nos vasos de barro (isto é, na fraqueza humana a que ele se
referiu), nós temos tesouros para que ele brilhe como é extraordinário o poder de
Deus. A Palavra tem poder pela manifestação do espírito e do poder, não pela
persuasão das expressões sábias.
Qual o caminho para ler e
compreender as Escrituras? Os judeus (os da circuncisão), por causa da dureza
do coração e da pouca inteligência, não acreditam em Jesus Cristo como o
Salvador e não acreditam porque seguem à letra as profecias que se referem a
eles, ou seja, como a letra não possui sentido figurado, ela não é alegoria
para eles. Como o sentido literal não se materializou a ponto de o lobo pastar
com a ovelha; de a pantera não descansar ao lado do cabrito; de o bezerro, de o
touro e de o leão não pastarem juntos e de não serem conduzidos por um menino; de
o boi e de o urso não pastarem juntos e de suas crias serem criadas umas com as
outras; e de o leão não comer a palha com o boi, os leitores judeus, presos ao
realismo da letra, não percebem na palavra seu sentido mais profundo, o
espiritual.
Nos Provérbios de Salomão (Pr
22:20-21), Orígenes encontra o caminho para o sentido, para a compreensão das Escrituras.
Com os Provérbios, que diz inscrever três vezes na própria alma os pensamentos
das Escrituras santas, ele divide o homem em simples (corpo), em alma (psíquico)
e em espírito, e assim também são as Escrituras. A fim de exemplificar essa
divisão, Orígenes cita a passagem do livro Pastor
(Visão II, 4,3), onde Hermes escreverá dois livros, sendo que um será dado a
Clemente, que o enviará às cidades de fora; e outro, a Grapté, que advertirá as
viúvas e os órfãos. Estes são almas da letra simples; e aqueles das cidades de
fora, almas fora das realidades corporais e dos pensamentos deste mundo.
Entretanto, algumas Escrituras não têm sentido corporal, fazendo com que só se
procure o seu espírito.
Sem a interpretação espiritual, as
realidades celestes ou superiores permanecem como símbolos e como sombras.
Orígenes especifica ainda mais essa interpretação com exemplos (1Cor 2:7, 1Cor
10:11, 1Cor 10:4, Hb 8:5, Cl 2:16, Hb 8:5) que tecem uma relação entre termos
(sabedoria escondida, figuras, modelo, alegorias, sombra) velados sempre por
aqueles que são semelhantes a Grapté, alma da letra simples destinada ao
sentido corporal das Escrituras. Observa Orígenes: não é inútil o sentido
corporal porque ele é capaz de melhorar a maior parte dos homens na medida de
suas capacidades.
Na última parte do livro, seu autor
destaca várias passagens bíblicas a fim de mostrar que existe um sentido mais
profundo do que está escrito. Um desses exemplos, Ex 16:28: “Cada um de vós
estará sentado na sua casa e que ninguém se mova de seu lugar no sétimo dia”.
Caso se conduza essa leitura ao seu sentido literal, ao sentido corporal, isto
é, a um sentido que reduz a Palavra à superfície, fato histórico e realidade
mística não se harmonizam e, com efeito, não se revela o sentido mais profundo
do acontecimento. Ora, se lermos de forma literal, o que está escrito em Ex
16:28 não pode ocorrer corporalmente, e Orígenes deixa isso bem claro. O
sentido corporal pode diminuir a grandeza do sagrado, porque não se compreende
o que a letra apresenta, pois às vezes o que é tomado à letra não é verdade.
Precisa-se saber onde ele é verídico e onde não verídico o sentido literal,
corporal. Para tanto, Orígenes exemplifica: “Investigai as Escrituras” (Jo
5:39). Uma vez investigadas, entende-se alegoricamente o que não aconteceu
segundo a letra, porque, como afirma o autor na página 305, “nossa disposição é
aceitar que ela tem sempre um sentido espiritual, mas que não tem sempre um
sentido corporal, pois já se demonstrou muitas vezes que o sentido corporal é
impossível”.