segunda-feira, abril 14, 2014

Resenha sobre o Belo

As pinceladas da fé nos quadros da arte medieval

         Resenhado por Aldo Antônio Tavares do Nascimento

ECO, Umberto.  Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010.

       Observe este mural na igreja de São Clemente, Quatro apóstolos, do século XII; repare os corpos estáticos, suas expressões invariáveis, volumes e dimensões uniformes, figuras chapadas que anulam toda ilusão de movimento. Com suas imagens que desconsideram tamanho, forma, proporções, volume, cor, nossos olhos contemplam a arte mais típica da cultura medieval, a românica, que prevaleceu por toda a Alta Idade Média (476-1000).
            Movimento. Ele virá pelo norte europeu, assim como o espaço, a luz, a cor, enfim, a composição extensiva da cultura popular e da natureza. No sul, permanecia a influência da arte bizantina, presa ainda às formas fixas, com o seu hieratismo (invariável), a frontalidade, tricromatismo (normalmente o azul, o dourado e o acre), isocefalia, isodactilia e hierarquia dos espaços (figuras mais sagradas para as menos sagradas). Mais do que arte, a pintura bizantina é dogma.
            Romper com o imóvel. O nome que pincelou profundas rupturas foi Giotto di Bondone (1266-1337), sendo seu maior trabalho na Capella degli Scrovegni, onde retrata cenas da Virgem Maria e da Paixão de Cristo, entre 1303 e 1310. Até conceber a impressão do movimento em sua pintura, um longo período de agonia conceitual atravessou décadas da Idade Média, podendo ser lido tamanho enfrentamento na obra que motiva este artigo, Arte e beleza na estética medieval, publicada em 1987. Entretanto, para que suas páginas fossem lidas no Brasil, elas só foram ancoradas em nossa língua em 2010, após 23 anos.
            Nascido em Alexandria, em 1932, Umberto Eco escreveu esse livro como quem caminha por trilhas conceituais, isto é, por serem estreitas as trilhas, os detalhes de seus passos ampliam nossa visão do que seja a estética do pensamento cristão medieval, por exemplo, não podemos separar a moral da arte porque nesse período a natureza refletia a transcendência de Deus. A consciência da beleza, portanto, é dado metafísico.
            Entretanto, para além dos conceitos pensados por sacerdotes, havia o gosto do homem comum, do artista e do amante das coisas de arte, voltados, vigorosamente, para aspectos sensíveis. Por isso, os sistemas doutrinais da Igreja justificavam e dirigiam esse gosto a fim de que o sensível não ultrapassasse o espiritual. Ao cruzar dois conceitos (metafísico e sensível), a filosofia cristã admite um saber-deleite com a finalidade de melhor amar a Deus, podendo o cristão, portanto, ajoelhar-se diante do amor ornamental. Nessa interseção conceitual, que é reação ao mundano (sensível) e a tensão para o sobrenatural (metafísico) para que os olhos serenos contemplem as coisas do mundo, repousa-se, nesse contraste, nesse ponto de encontro, ela: a paz dos sentidos.
            Duas correntes místicas (a Ordem de Cister, os cistercienses, e a Ordem dos Cartuxos), sobretudo no século XII, opõem-se ao luxo e às figuras na decoração das igrejas: seda, ouro, prata, vitrais coloridos, esculturas, pinturas, tapetes. São Bernardo de Claraval (1090-1153), monge cisterciense, lança-se contra esses supérfluos ou percepções porque eles desviam os fiéis da piedade e da concentração da prece. Patrono da Ordem dos Templários, São Bernardo escreveu as regras dos cavaleiros; pensou a cristandade como força militar, mesma rigidez conceitual concebida na arte.
            Embora houvesse o rigorismo místico de São Bernardo, havia também uma mística que se voltava para o mundo sensível, a do agostiniano Hugo de São Vítor (1096-1141), teólogo mais famoso antes de Santo Tomás de Aquino. Por meio de seu pensamento, o deleite estético provém, efetivamente, do fato de que o ânimo, a alma, reconhece na matéria a harmonia de sua própria estrutura. (ECO, pág. 31). Mas até chegar ao subjetivo de um gosto estético foi um longo percurso. Antes dessa consciência, entretanto, o belo, para o homem medieval, deveria coincidir com o bom. Suger (1081-1151), abade de Saint Denis, concebe a casa de Deus como espaço acolhedor da beleza, encontrando em Salomão e em Pseudo-Dionisio sua justificativa. Suger quem permite a arte gótica no cristianismo. Segundo Erwin Panofsky (1892-1968), o abade concebia a arte como obra teológica, ou seja, o belo associava-se ao que é útil, porque, transmitida pela antiguidade e passada de Cícero a Agostinho e de Agostinho a toda Escolástica, essa ideia afirma que aquilo que é belo é belo em função de algo. No sínodo de Arras, em 1025, havia iniciada uma campanha para permitir aquilo que os simples não pudessem entender por meio da escritura deveria ser aprendido pelas figuras. A pintura deve, pois, embelezar a casa de Deus, revocar a vida dos santos e o deleite dos incultos; um dos problemas da estética escolástica, todavia, foi precisamente o da integração da metafísica do belo com os valores, por exemplo, da unidade, da verdade, da bondade. (ECO, pág. 42).
            Manifestado na visão estética do cosmo, o belo pertence à ordem e, por isso, é propriedade estável e não sentimento poético de admiração. Sistematizado pela filosofia Escolástica conforme a tríade sapiencial (numerus, pondus e mensura; ou modus, forma e ordo; ou substantia, species e virtus; ou ainda constat, congruit e discernit), a Escolástica pensará o belo como noção de propriedades transcendentais, quais sejam, unidade, verdade e bondade, todas retiradas do pensamento grego. Podendo ser pensado como um transcendental, o belo cristão, nos séculos XII e XIII, revive a kalokagathia grega ou a unidade kalos kai agathos (belo e bom), possibilitando a harmônica conjunção de beleza física e virtude.
            Além da arte gótica (segundo parágrafo), que permitiu uma ruptura com a arte bizantina, a espiritualidade franciscana, envolvida com grupos populares, com a realidade material do mundo, com a contemplação da natureza, com o otimismo da vida e com a beleza dos elementos, também influenciou para que fosse percebida na arte a presença do sensível. Não por outro motivo que Giotto expressa o naturalismo da sensibilidade franciscana, podendo ser apreciado na obra A morte de São Francisco.  A presença do sensível, conforme a Ordem Franciscana, veio à luz em 1245, na forma de Summa theologica, obra dos frades Jean de la Rochelle, Frater Considerans e Alexandre de Hales, mas dita Summa fratris Alexandri. Nela, belo refere-se à causa formal, entendendo como forma o princípio substancial de vida, sendo, portanto, ideia aristotélica. “Chamo forma a essência de cada coisa e a substância primeira”, afirma o pensador em sua Metafísica. Assim sendo, a beleza é a disposição da forma em relação ao exterior. Na Summa, bem e belo fundam-se na forma concreta das coisas. Mas, por prudência dos franciscanos, o belo ainda não pertence à série dos transcendentais. Somente após cinco anos, em 1250, São Boaventura escreve em um opúsculo as quatro condições do ser: uno, que concerne à causa eficiente; verdadeiro, à formal; bom, à final; e belo, que abraça todas as causas e é comum a elas. Sendo o belo uno, verdadeiro e bom, o belo atravessa todos os transcendentais.

            Alberto Magno influencia Tomás de Aquino
            Mestre de Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno (1193/1206-1280) retoma dos franciscanos “o belo fundado na forma de uma coisa” por meio de um comentário que, sob o título de De pulchro et bono, figurou por longo tempo entre os Opuscula de Santo Tomás. Para Alberto Magno, “a essência universal do belo consiste no esplendor da forma sobre as partes proporcionais da matéria ou sobre as diversas forças ou ações”. Com isso, permite-se que o belo passe a pertencer verdadeiramente a todo ente a título metafísico. Ao dizer forma e partes proporcionais da matéria, vê-se uma Idade Média inspirada no hilemorfismo aristotélico, isto é, a forma (morfe) compõe-se com a matéria (hyle) para dar vida à substância concreta e individual (ECO, pág. 60). Segundo Alberto, há no hilemorfismo várias tríades de origem sapiencial ou intelectual, quais sejam, modus, species e ordo; numerus, pondus e mensura. Essa “matemática do belo”, todavia, não considera a referência ao ato humano conhecedor como constitutivo do belo em sua própria ratio, sendo, portanto, uma estética marcada por um rigoroso objetivismo. A percepção do outro ainda não existe. Há outro objetivismo: o de que o belo, embora seja propriedade transcendental do ser, revela-se em uma relação em que o homem focaliza o objeto, e esse é pensado por ele - Santo Tomás de Aquino.
            Para chegar à matemática, à lei dos números, Umberto Eco conduz o leitor ao capítulo 3. Depois, amplia essa concepção de estrutura, cuja gênese é Pitágoras. Na condição de causa, princípio, ninguém pode compreender o belo sem antes atravessar o caminho reto dos geômetras, qualquer semelhança com Platão em Timeu, obra onde as formas matemáticas estruturam a Ordem (Cosmo), não é mera coincidência. 
            A arte sensível de um santo
            No capítulo 7 (parte 7.4), Eco escreve que, ao retomar as noções estéticas propostas por Alberto Magno, Tomás de Aquino ocupa-se da visão subjetiva do belo, o que seu professor desconsiderou. Para confirmar essa divisão entre mestre e discípulo, Umberto Eco retira um exemplo da Suma Teológica I, onde bem e belo amalgamam-se na forma, na substância, no que sustenta, isto é, na estrutura. O subjetivo emerge em Tomás porque belas são chamadas as coisas que despertam prazer quando vistas e, se despertam, é porque nossos sentidos deleitam-se nas coisas bem proporcionadas. Em Tratados das Enéadas, Plotino (205 d. C.-270 d.C.) concebe o belo como simetria das partes para haver a harmonia do conjunto. Tanto proporção quanto simetria são conceitos que alinham o belo à matemática, ou matematismo e belo formam um só cálculo. Os sentidos então são uma espécie de proporção, uma espécie de simetria.
            Foi dito antes que bem e belo fundam-se na forma, sendo que o bem faz com que a forma seja objeto de apetite porque todo ente deseja o bem; o belo, ao contrário, coloca a forma em relação com o puro conhecimento, por ser ele, o belo, aquilo cujo conhecimento causa prazer. Sendo assim, olhar é conhecer, e o deleite estético não passa de uma consequência desse conhecimento, visto que esse ato de adesão deleitosa é determinado pelo belo ou pelas formas matemáticas. A ideia de Tomás traz o subjetivo; ele, porém, é determinado pelo belo ou por conceitos matemáticos, cujo propósito implica apaziguar os sentidos, os apetites. Diferente de Tomás de Aquino, o ato de adesão deleitosa pode ser muito bem um livre ato de efusão concedida à coisa e não determinada por ela, e quem pensa assim é João Duns Escoto (1265-1308), para quem a visão estética é uma faculdade livre, pois seus atos sujeitam-se ao império da vontade. Longe de ser coincidência, essa faculdade livre - subentendam-se as experiências -, Escoto pertence à ordem franciscana, a mesma ordem de Roger Bacon (1214-1294) e de Robert Grosseteste (1168-1253). Todos estudaram na Universidade de Oxford e, entre eles, existe esta linha mestra de conhecimento, qual seja, a experimentação ou a vontade do sujeito.
            Penso ter ofertado uma ideia do que seja este significativo livro de Umberto Ecos. No capítulo 8, Santo Tomás e a Estética do Organismo, o autor detalha mais ainda o que esse pensador conceitua o belo; porém, como início, apresentei uma linha de raciocínio em que pontos importantes foram relacionados.