sexta-feira, julho 06, 2007


Cântico negro
José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
_________________________

José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

Notas da TRIBUNA


Farra oficial 1

Servidores de um órgão estadual que geralmente vão a trabalho a Epitaciolândia ou a Brasiléia, com diárias pagas pelo contribuinte, aproveitam e dão uma esticadinha até a Zona Franca de Cobija para comprar bujingangas e importados. E atravessam a fronteira no carro oficial, placas brancas.

Farra oficial 2

Ontem mesmo, a coluna recebeu telefonema de uma moradora de Brasiléia. Ela presenciou uma cena dessas. Fotografou o carro com os três bacanas, embarcando cheios de sacolas. O carro era um Fiesta branco.

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Texto retirado da revista CUT


Por dentro da TV

São 170 milhões de telespectadores. A partir do início da década de 1950, o Brasil tornou-se o país da televisão, num processo de conquista que começou quando as câmeras da PRF3-TV, a extinta TV Tupi de São Paulo, deram início à sedução.

O país abraçou com gosto o eletrodoméstico, que determina padrões estéticos, modifica a linguagem popular, dita comportamento, oferece entretenimento fácil e, no fundo, não quer ser nada mais que uma luminosa e colorida vitrine para a venda de produtos e serviços. Em outras palavras, um bom negócio para os beneficiários das concessões dos canais comerciais.

Essa visão extremamente crítica, adotada parcial ou totalmente por dez entre dez intelectuais, não impede, entretanto, que o veículo seja estudado nos meios acadêmicos. Teses e teses são produzidas todos os anos pela universidade, numa discussão que faz todo o sentido. Afinal, como negar o poder da televisão na vida das pessoas?

Para o bem ou para o mal, sua influência tende a crescer ainda mais a partir de dezembro próximo, com o anunciado lançamento da TV digital no país. A tecnologia que, entre outros recursos, promove a convergência com a Internet, deverá tornar a televisão mais onipresente.

Mas a promessa de um salto de qualidade no conteúdo vem de outra frente: a rede pública, bancada pelo governo federal, cujo lançamento também está prometido para os próximos meses.

Cult convidou jornalistas especializados, pensadores e profissionais do setor a refletir sobre o passado, o presente e o futuro da televisão brasileira. O resultado está nos ensaios, depoimentos e entrevistas publicados no dossiê da CULT de julho, que já está nas bancas. Leia, abaixo, um dos textos do dossiê:

A TV digital pode nos libertar do apartheid
Por Laurindo Lalo Leal Filho

No final dos anos 1980, anunciava-se no Brasil a chegada da televisão por assinatura. Dezenas de canais seriam oferecidos ao público, rompendo os estreitos limites da televisão aberta, único modelo de transmissão até então conhecido.

A tecnologia chegava para democratizar a TV brasileira, dando finalmente ao telespectador ampla possibilidade de escolha. A partir daquele momento, tornava-se irrelevante discutir a qualidade da programação oferecida. Afinal, com a multiplicação de canais, a questão estaria superada. Dali para a frente haveria televisão para todos os gostos. Pelo menos, era o que se dizia.

Doce ilusão. Combinando o abismo na distribuição de renda com a promíscua relação existente entre concessionários de canais de TV e os poderes públicos, a nova tecnologia serviu para tornar ainda mais perverso o papel da televisão no Brasil. Inaugurou-se, com a TV por assinatura, o apartheid televisivo.

De um lado, a minoria economicamente privilegiada, com acesso a uma programação um pouco mais diversificada. De outro, a grande maioria - cerca de 90% da população, ou 160 milhões de brasileiros - condenada a ver programas que, quase sempre, beiram a indigência.

O custo da assinatura é proibitivo para a maioria. Mas mesmo a minoria afortunada, dispondo de mais canais, não se viu contemplada por uma ampla diversidade artística, cultural ou informativa. Melhorou um pouco, mas não muito.

Isso porque a nova tecnologia ficou nas mãos dos mesmos empresários que historicamente controlam a radiodifusão no país. Eles detêm quase todos os novos canais, reafirmando na TV por assinatura o oligopólio consagrado na TV aberta.

Nada indica que o mesmo não venha a ocorrer com a TV digital, anunciada para entrar no ar, em São Paulo, no próximo dia 2 de dezembro. Outra vez, vozes que se levantam contra a qualidade do serviço prestado pela televisão são contidas sob a alegação de que com a nova tecnologia tudo será diferente.

E agora os novos canais não se contarão mais às dezenas, como se previa para o cabo, e sim às centenas, digitalizados. Resta perguntar: quem os controlará? E de que forma serão utilizados?


As perspectivas não são muito animadoras. Há fortes indícios de que uma tecnologia, como a da TV digital, capaz de impulsionar a democratização da oferta televisiva, venha a ser apropriada pelos mesmos grupos que sempre controlaram o setor.

São empresas operadoras de um serviço público atuando estritamente nos limites da lógica comercial, determinada pela maximização dos lucros. Nessa linha, a possibilidade do uso ampliado do espectro reduz e a diversidade da programação ficará, outra vez, posta de lado.

A equação é simples. A digitalização da TV permite o alargamento das faixas de transmissão. Onde hoje trafega uma programação, poderão passar quatro ou mesmo oito. Bem utilizados, outorgados para empresas e instituições públicas capazes de atender diferentes demandas da sociedade, esses canais ampliariam significativamente a oferta de programas, com resultados positivos tanto para o telespectador como para a imensa maioria de produtores.

Ganhariam quase todos: o público, que passaria a ter opções reais de programação, e o mercado produtor independente, hoje sem espaço nas grandes redes. Seria o melhor dos mundos: a diversidade artística, cultural e política do país chegando à casa de todos os brasileiros combinada à ampliação do mercado de trabalho no setor.

No entanto, ao que tudo indica, a nova tecnologia não será usada dessa forma. Aos atuais concessionários de canais analógicos será outorgada toda a faixa de 6 megahertz por onde trafegarão os sinais digitalizados. E eles farão o que bem entenderem nesse amplo espaço.

Poderão multiplicar as suas próprias programações, o que implicará numa definição das imagens um pouco mais baixa (mas ainda semelhante àquelas que vemos hoje através dos DVDs) ou veicular programas únicos em alta definição. Infelizmente, a decisão, mais uma vez, não levará em conta o interesse público. Prevalecerá o que for mais rentável.

Dentro da mesma lógica, deverá ser operada a outra novidade trazida pela TV digital: a interatividade ampla. A nova tecnologia abre a possibilidade de integrar à Internet os milhões de aparelhos receptores de televisão em uso no país.

Para isso, são necessários conversores a preços acessíveis e a reserva de áreas do espectro para esse tipo de serviço. A tendência, observada a lógica comercial, será a introdução de uma interatividade simples, capaz apenas de facilitar a venda mais rápida dos produtos anunciados pelas redes de TV. Se isso de fato ocorrer, estará consagrado o uso medíocre de uma tecnologia altamente sofisticada.

Cabe, ainda, entender melhor quais são os atores até aqui apontados como os maiores beneficiados pela chegada da TV digital: as empresas concessionárias de canais de televisão. Bens públicos, as concessões se tornaram, na prática, privadas e praticamente hereditárias.

A constituição de 1988, ao definir que a não-renovação de uma concessão de rádio ou TV deva ser aprovada por dois quintos do Congresso Nacional em votação aberta, praticamente tornou perenes os atuais concessionários. E sobre o tema há um silêncio quase sagrado. Pesquisadores e jornalistas encontram dificuldade para saber quando começa e quando acaba uma concessão desse tipo.

Com muito empenho se soube, por exemplo, que vários períodos de outorga vencem nos próximos meses. Um assunto de grande relevância social e política. Afinal, são esses concessionários que ditam a pauta nacional, já que a maioria absoluta da população só se informa ou se diverte pela TV.

Cabe então perguntar: será que eles estão prestando um bom serviço público à população? Que contribuição têm dado para reduzir a violência, aumentar a solidariedade, promover o desenvolvimento cultural e artístico da nação? Como estão refletindo a diversidade de idéias existente no país, fundamental para o exercício da democracia? São questões imprescindíveis para uma análise da qualidade do serviço público prestado pelos concessionários.

E está na hora dessa análise ser feita. Sabe-se, por exemplo, que vencem no próximo dia 5 de outubro as concessões da Rede Globo em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte; a da Record, em São Paulo; da Bandeirantes, em São Paulo e Belo Horizonte; da Jornal do Commercio em Recife, entre outras.

Seria o momento de avaliarmos publicamente os serviços por elas prestados nos últimos 15 anos, período de vigência das outorgas. Caberia à sociedade dizer, por exemplo, se está satisfeita com a programação que recebe em casa e quais mudanças propõe para os próximos anos. Seria um excelente exercício democrático, infelizmente ainda desconhecido entre nós.

Das respostas sairia o balizamento para as novas concessões, as quais, seguindo na linha do aprofundamento da democracia, teriam como princípio básico a garantia da diversidade. Seria o modo de romper com a mesmice atual, na qual a competição pela audiência se dá em torno de fórmulas exaustivamente repetidas, desprezando o experimento e a inovação.

Nesse quadro, a única sinalização positiva, ainda que embrionária, é a da criação de uma rede pública de televisão. Se bem-sucedida, poderá alterar o panorama sombrio esboçado até aqui. De um lado rompendo com as amarras do mercado, mostrando ao público a vida que existe além desse limite.

De outro, provocando mudanças na própria televisão comercial, confrontada com um telespectador mais exigente, conhecedor da diversidade televisiva, a ele apresentada pela rede pública. Embora estreito, esse parece ser o único caminho existente, pelo menos neste momento, para alterar o panorama desolador vivido pela televisão brasileira às vésperas da chegada da TV digital.
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Laurindo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero