terça-feira, fevereiro 23, 2016

História, Deus e a Filosofia

Por causa da ditadura militar, a Lei 5.692, de 1971, ordenou a retirada da Filosofia das escolas brasileiras. Após 25 anos, ela retorna; porém sem ser obrigatória conforme a Lei 9.394, de 1996. A Lei 11.684, de 2008, determina que o pensar filosófico é obrigatório no ensino médio. Entretanto, como não existe professor de Filosofia formado em número suficiente para lecionar nas escolas, o estado brasileiro encontrou uma saída - o professor de história pode lecionar Filosofia.

Se o professor de história fala Filosofia a jovens do ensino médio, a Filosofia, óbvio, não fala de si mesma, sendo, portanto, um estranho que fala Filosofia. Por ser um estranho que fala, ele deforma a Filosofia, e tamanha desfiguração ocorre quando a história fala a Filosofia na Idade Média, a ponto de dizer que a Filosofia, por estar na Idade Média, não é Filosofia.

Mas Deus deve estar na grade curricular de Filosofia a fim de que seja pensado por meio de filósofos medievais que possibilitaram a riqueza de diálogo entre a fé e a razão. Muito diferente do professor de história que fala Filosofia, pertence à Idade Média uma Filosofia plural, farta de tensões, cuja linguagem exercita a mais autêntica Filosofia que pensa profundamente Deus. 

Para que Deus seja pensado na escola por meio de uma linguagem profundamente reflexiva, que é a linguagem filosófica, o professor de história precisa sair de cena com suas aulas que não compreendem a Filosofia, mesmo porque a história não pensa conceitos e não pensa porque não cabe a ela pensá-los.

O destino da Filosofia, por outro lado, é pensar conceitos ou se pensar na própria linguagem. Se Deus é evocado, se Deus é pronunciado, a vastidão do divino na alma humana, além de ser fé, também é razão que compreende a fé enquanto conceito vital para o ser humano. Não é da natureza da fé se pensar, mas sim é da natureza da razão reflexiva se pensar e pensar a fé na vida humana. Para tanto, o professor de Filosofia precisa estar muito bem formado a fim de reparar o erro ainda cometido pelo professor de história, o de falar o que não sabe.

Existe um deus menor propagado por homens menores, aqueles que se julgam pregadores da “verdade” desse mesmo deus, limitado pela densa ignorância, pela espessa arrogância da intolerância. Por outro lado, pulsa um Deus pensado por cristãos da Idade Média que engrandecessem o pensamento.

Esse Deus precisa ser lido na escola, precisa ser entendido pela razão. O deus falado de qualquer maneira por cristãos em qualquer igrejinha de esquina, erguida ao lado de qualquer boteco como se ela mesma fosse o próprio boteco de deus, tem prevalecido como inconsequência delirante de uma fé insana e autoritária de pastorzinhos e de padrecos. Por falarem muita merda em nome do Senhor,

Deus precisa ser pensado na escola por meio da Filosofia; no entanto, ao ter sido desfigurada pelo professor de história, falta Filosofia até hoje na escola. Porque o pensamento filosófico não fala o pensamento filosófico, visto ser falado pelo professor de história, a Filosofia está ausente no ensino médio desde 1971, ou seja, são 37 anos sem que a palavra seja pensada na escola.

sábado, fevereiro 20, 2016

Mosquito ou carapanã?

            
Por mais de 20 anos, do ensino fundamental ao universitário, lecionei no Acre e, como professor de Língua Portuguesa e de Literatura, conheci de perto a escrita de meus alunos. Conheço seus erros mais comuns, conheço muito bem a estrutura educacional da escola pública acriana para afirmar que os índices muito ruins de Língua Portuguesa, segundo o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), não poderiam ser outros. A escola pública do Acre ensina muito mal a Língua Portuguesa.
            
A Academia Acreana de Letras e a Secretaria da Educação do Acre, entretanto, põem a público um plebiscito para que, por exemplo, alunos escolham entre “acreano” e “acriano”. Escrever bem nas escolas se reduz a isso, à escolha de um fonema, ou seja, à escolha de uma unidade mínima não significativa, porque, nessa unidade, segundo alguns, encontra-se a identidade de um povo. Escrever “acriano”, portanto, é perder a identidade do povo “acreano”.

Não quero aqui pensar, segundo a Filosofia, o conceito de identidade e, segundo a gramática clássica, pensar o fenômeno na própria palavra para que seja “acriano”; não quero também entrar na questão justa de, fora da natureza da própria palavra, escrevermos “acreano”. Sou defensor das duas formas, tal como existiam antes da atual reforma ortográfica, visto que a Lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971, permitia escrever “acreano” (forma popular) e “acriano” (forma clássica). No entanto, afirmar que “acreano” mantém a identidade histórica de um povo por causa de um fonema, convenhamos, é afirmar, por analogia, que a população brasileense perde sua identidade por ter de escrever, conforme a lei ortográfica atual, “Brasileia” e não “Brasiléia”. Tanto o fonema quanto o acento são “traços”. A identidade encontra-se, nesse caso, no traço? 

Se um “acreano” ou um “acriano” visitar o Rio de Janeiro, sua identidade regional será identificada por causa do som ou do fonema “e” em “acreano”? Penso que não. Entretanto, se esse mesmo “acriano” ou “acreano” falar “carapanã da dengue” e não “mosquito da dengue”, a sua identidade regional marcará diferença na cultura linguística do Rio de Janeiro? Penso que sim. Igual a “mosquito”, “carapanã” é gênero, devendo a espécie ser “carapanã Aedes Aegypti” no Acre e “mosquito Aedes Aegypti no Rio de Janeiro”. Todavia, a Academia Acreana de Letras e a Secretaria Estadual de Educação do Acre incomodam-se com o “acriano”, permanecendo indiferentes ao “mosquito da dengue”. 

Ora, a memória habita na palavra, não no fonema de “acreano”, não no acento agudo de “Brasiléia”. Nós pensamos a beleza identitária do Acre não por causa de “e” ou de “i”, mas porque “e” e “i” deixam de ser unidades mínimas não significativas NA PALAVRA, quer dizer, por estarem NA PALAVRA, deixam de ser unidades mínimas não significativas porque os fonemas “e” ou “i” se relacionam com outros fonemas NA PALAVRA. É a palavra, portanto, guardiã da memória; pois, nela, NA PALAVRA, as relações fonêmicas possibilitam o fonema ser unidade mínima significativa ou, mais ainda, possibilita NA PALAVRA o sentido de um povo ou perda dele.

Sou pai de uma filha acriana ou acreana, Lara Valentina, e ela chegará ao Rio de Janeiro ainda neste mês para conviver comigo, com a minha esposa acreana ou acriana e com a cultura carioca. Quando pequena, creio uns 9 anos, ela me perguntou o que ela deveria fazer para também ser carioca. Pensei um pouco e disse-lhe “diga sempre pernilongo ou mosquito, jamais carapanã”. Quando ela pisar em solo carioca, a primeira coisa que direi a ela será “minha acriana filha, diga sempre nesta parte do Brasil 'carapanã', porque essa palavra marca a sua identidade regional”.               
           

Aldo Bourdieu é professor de Filosofia, de Sociologia, de Literatura, de Religião e de Língua Portuguesa.

sábado, fevereiro 06, 2016

A ESSÊNCIA segundo MARX e ENGELS

A editora Boitempo publicou em 2007 "A Ideologia Alemã", de Karl Marx e de Friedrich Engels. Em hipótese alguma, trata-se de uma obra filosófica, isso é evidente, porque os autores não pensam os conceitos; eles os jogam nas folhas.



Dois desses conceitos, "ser" e "essência". Nas páginas 46 e 47, escreve-se no rodapé que "a 'essência do peixe é o seu 'ser', a água - (...). A 'essência' do peixe de rio é a água de um rio. Mas esta última deixa de ser a 'essência' do peixe quando deixa de ser um meio de existência adequado ao peixe, tão logo o rio seja usado para servir à indústria, (...)".


Não são pensados no livro os conceitos "ser" e "essência", e o leitor que ignora leituras clássicas sobre o "ser" e a "essência" limita-se aos autores de "A Ideologia Alemã", que não pensam os conceitos, joga-os.



Quando Aristóteles pensou o "ser" e a "essência", ele não excluiu a vida (do peixe no rio), ele não excluiu uma vida melhor (para o peixe no rio).



Porque não visitam o pensamento clássico, porque não pensam conceitos no livro, Engels e Marx mutilam "ser" e "essência". E nem poderiam pensar, porque, segundo eles, "filosofia é lixo".