sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Rei Momo e Cinderela na Floresta Encantada



O Carnaval de Cinderela
De Aldo Nascimento

Dias antes de Momo receber a chave da cidade de Rio Branco, o poder público vai à TV para falar somente de segurança, de camisinha e da programação do Carnaval. Para piorar o nosso imaginário, durante a festa, sempre aparece aquele repórter da TV a perguntar se o folião está alegre no baile.

Programada pelo Estado e pela Prefeitura da capital, a festa de Momo aqui se assemelha a uma “alegria paraestatal”, porque ela não encarna espontaneamente a irreverência popular.

O tempo carnavalesco no Acre, por exemplo, regulado por instituições públicas, recebe a ordem de que Momo deverá parar de brincar à meia-noite. Argumenta-se que é para evitar índices maiores de violência. Mas uma festa acreana, cujo índice de violência é maior, não termina à meia-noite. O lucro que a Expoacre gera dura cinco dias.

Nosso Carnaval é programado e domesticado pelo poder público. Não se trata de uma manifestação que se espalha pela cidade como corpo social motivado pelo Riso, pela Máscara, mas se concentra, por exemplo, no calçadão da Gameleira até meia-noite. Por isso, nossa festa recebeu o apelido de Carnaval de Cinderela.

A Fundação Garibaldi Brasil, da Prefeitura de Rio Branco, e a Fundação Elias Mansour, do Estado, nunca apresentaram alguém para falar na TV Aldeia sobre a importância imaginária e social do Carnaval.

Há, por parte dessas instituições, a necessidade inconsciente de substituir a desobediência do Riso por um didatismo que enquadra Momo em um espaço restrito, em um horário limitado e em blocos carnavalescos domesticados.

Se nossas fundações culturais não vão à TV com sua fala desconcertante, irreverente, ouvimos então aquele representante da Polícia Militar falar sobre segurança e aquela jornalista perguntar ao folião sobre o que acha do Carnaval deste ano.

Cinderela

Até meia-noite, o povo voltará a ser Gata Borralheira, e sem direito a sapatinho de cristal. O mito de Ciderela, que tem três versões [a chinesa, a dos Irmãos Grimm (estética romântica) e outra de Charles Perrout (estética clássica)], chegou a nós modelada pela ideologia clássica, e Walt Disney tratou de industrializar.

Cinderela simboliza uma personagem limpa, muito bem-comportada, uma jovem que não anda à margem da sociedade. Cinderela é obediente. Nesse sentido, batizaram o Carnaval de Rio Branco de Carnaval de Cinderela, porque à meia-noite Momo perde seus encantos.

Sobre esse desejo do poder disciplinar o Riso, de conter uma manifestação popular e marginal, Georges Monois registra no livro História do Riso e do Escárnio.

“Em 1538, nas cidades flamengas, o imperador interdita a festa do Rei dos Bobos, como em Lille, em 1540, e um cronista de Valenciennes justifica essas medidas pelo fato de que esses regozijos ‘induzem o povo a fazer badernas e derrisões contra nossa santa religião’”.

Nesse período da história, os Carnavais não só atentaram contra a religião católica como também ameaçaram a ordem pública, degenerando, às vezes, em conflitos armados. Assim, como Rei Momo representa um conflito contra a aparência ética dos sacerdotes, dos reis, dos políticos, o século 16 marca uma época em que o Carnaval precisava ser domesticado. Escreve Monois.

“Para essa elite, a festa torna-se celebração didática e séria de uma ordem, isto é, o inverso da festa popular”, e continua. “Os valores da sensibilidade subjetiva, o gosto do prazer, os frutos da ‘natureza’ foram rejeitados em nome de uma subordinação a uma concepção ética.” Cinderela, na condição de princesa, ensina bons modos a Rei Momo.

Momo

Filho da Noite, da sombra, do sono, esse deus personifica a “maledicência”, o comentário maldoso. A história de Momo representa uma história que difama aqueles que têm poder. Sua festa, em sua origem, ri de quem oprime os humilhados.

“Particularmente ridículos são aqueles que se julgam importantes, porque, no mais alto trono do mundo, só estamos sentados sobre o cu”, diz Momo quando abre a porta para os loucos (os foliões).

Na condição de sombra, sua festa noturna inverte a opressão do trabalho, realizado de dia. Se o fruto do trabalho não paga uma vida digna, resta zombar de quem explora e, assim, distribuir o excesso, o exagero, a desmedida, por isso o corpo de Momo, gordo, representa simbolicamente esse excesso, a fartura.

O Riso, esse excesso, como concebe Henri Bérgson em seu livro O Riso, coloca do avesso as diferenças sociais por meio da paródia, da fantasia. “Assim rimos do acusado que dá lição de moral ao juiz”, observa o autor.

Outro nome, Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis, analisa essa cultura popular com maestria, tecendo uma comparação entre o Carnaval, o Dia da Pátria e a Procissão. Sua descoberta, por exemplo, sobre a palavra brincar é interessante.

“E brincar significa literalmente ‘colocar brincos’, isto é, unir-se, suspender as fronteiras que individualizam e compartimentalizam grupos, categorias e pessoas”, interpreta DaMatta. “Criamos, então, um espaço especial onde as rotinas do mundo diário são rompidas e de onde se pode observar, discutir ou criticar o mundo real visto de pernas para o ar.”

Em Rio Branco, as pernas, entretanto, pertencem a ela - Cinderela.
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Indicações para uma boa leitura
sobre as representações simbólicas de Rei Momo

História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois, editora Unesp;

Comicidade e Riso, de Vladimir Propp, editora Ática;

O Riso, de Henri Bérgson, editora Guanabara;

Mitologia Grega (volume 2), de Junito de Souza Brandão, editora Vozes;

A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, de Mikhail Bakhtin, editora Hucitec;

Carnavais, Malandros e Heróis, de Roberto DaMatta, editora Guanabara