domingo, setembro 14, 2014

Ainda sobre um filme que é o Mal


Um filme que se destina a expressar a crença em Deus deve ser sempre altivo, belo, como é o filme “Jesus de Nazaré”, do cineasta Franco Zeffirelli, de 1977. O mesmo, entretanto, não ocorre com “Deus não está morto”, do diretor norte-americano Harold Cronk, porque, longe de ser uma película autoral, reflexiva, profunda, “Deus não está morto” não só constrange como encolhe a inteligência e a sensibilidade humana.

Assim, por não ser altivo e belo, por ser mercantilesco, por ser panfletário e por ser raso, o filme de Harold Cronk compactua com o Mal e... com o mau gosto.

Para quem submete a crença em Deus a um filme com tão baixa qualidade, rebaixar a Filosofia a ponto de deformá-la é bem mais fácil. Se o diretor de “Deus não está morto” intencionou um duelo entre Filosofia e Deus, precisam avisar a ele que a Filosofia faltou ao encontro em seu filme. Como falar do duelo entre Filosofia e Deus se não existe Filosofia em “Deus não está morto”? O professor de Filosofia Radisson (Kevin Sorbo) não é professor de Filosofia. Aquilo nunca foi Filosofia.

O duelo elegante entre Filosofia e Teologia está acolhido na Patrística Helênica (por exemplo, Orígenes), na Patrística Latina (por exemplo, Santo Agostinho, Boécio), na Primeira Escolástica (por exemplo, Pedro Abelardo), na Alta Escolástica (por exemplo, Santo Tomás de Aquino, João Duns Escoto) e na Escolástica Tardia (por exemplo, Guilherme Ockham).

Entre esses nomes – e poderia ter citado outros -, destaco a bela escrita no livro “Tratado sobre os princípios”, de Orígenes, e as belas palavras na obra “A consolação da filosofia”, de Boécio. Nesses dois títulos, pulsa o diálogo inteligente entre a Filosofia e a Teologia.

No caso de Orígenes (185-253 d. C.), ele se situa em uma época onde havia a supervalorização gnóstica do Novo Testamento, e Clemente de Alexandria (150-215/17), a fim de se contrapor a essa supervalorização, estabelece uma diferença e uma complementaridade entre os dois Testamentos. E Orígenes? Ao afirmar a necessidade de uma leitura paralela, aperfeiçoa a relação entre o Antigo Testamento e o Novo. Para ele, o Antigo é a figura do Novo. Mais: o Novo Testamento é espírito, conteúdo; o Antigo, literalidade, expressão retórica. Por ter sentido figural, o Novo é a promessa de coisas futuras. Por causa disso, com Orígenes, nasce o “discurso teologal”, não sendo mais discurso sobre Deus, mas sobre sua Escritura.

Com ele, fala-se em sentidos literal (corporal), moral (psíquico) e místico (pneumatológico) e daí o literal, o tropológico e o alegórico. Depois, lentamente, essa tríade transformar-se-á na teoria dos quatro sentidos das Escrituras: literal, alegórico,
moral e anagógico
.

Mas qual leitura correta? Segundo Umberto Eco, a leitura correta dos dois Testamentos legitima a Igreja como guardiã da tradição interpretativa e é a tradição interpretativa que legitima a leitura correta. As leituras que não legitimam a Igreja também não a legitimam como autoridade capaz de legitimar as leituras.

Qual leitura então legitima? Embora com nomes distintos, um tipo de leitura que já foi definida como tipológica foi privilegiada pela hermenêutica de Orígenes e dos padres em geral. Por causa de suas ações e de suas características, os personagens e os eventos do Antigo Testamento são lidos pelo sentido tipológico como tipos, como antecipações, como prefigurações dos personagens do novo. Essa leitura ou essa interpretação prevê que aquilo que é figurado (tipo, símbolo ou alegoria) é uma alegoria que não concerne ao modo no qual a linguagem representa os fatos, mas sim aos próprios fatos. Segundo Umberto Eco, trata-se da diferença entre allegoria in verbis e allegoria in factis. Enquanto palavra de Moisés, ela não deve ser lida como dotada de suprassentido, embora se deva fazer quando se reconhece que a palavra é metafórica. O que predomina é a allegoria in factis, porque são os próprios eventos do Antigo Testamento que foram predispostos por Deus - como se a história fosse escrita pela mão divina – para agir como figuras da nova lei.    Anos depois, Santo Agostinho (354-430) enfrenta de forma definitiva esse problema de alegorismo Escritural.

Para quem lê a palavra de Deus ou para quem busca o sentido da palavra nas Escrituras, as concepções comuns e a evidência do que se vê não bastam. A fim de demonstrar isso, de que tais concepções e tal evidência são insuficientes, tomam-se testemunhos do Antigo e do Novo Testamento e, por meio deles, confirma-se a fé pela razão. Mas, antes de considerar as Escrituras como divinas, Orígenes apresenta o legislador dos hebreus, Moisés, e o autor das doutrinas salvadoras do cristianismo, Jesus Cristo.

Assim como Moisés, houve também muitos legisladores entre gregos e bárbaros e, assim como Jesus, também houve mestres que pregavam a verdade. Entretanto, somente Moisés e Jesus fizeram nascer em outras nações o desejo de receber suas palavras.

Apesar do sacrifício, apesar da morte de alguns, aqueles que se entregaram à Lei de Moisés e aqueles que aceitaram Jesus pregaram a palavra em toda terra. Gregos, bárbaros, sábios, ignorantes, enfim, nações e homens diferentes partilharam e disseminaram a mesma religião anunciada por Jesus. Isso se encontra acima da força humana, e Orígenes, ao exemplificar com a própria Escrituras (Mateus 10:18 e 7:22-23), comprova, com a profecia de Jesus, a força divina acima dos homens.

Podemos dizer então que somente a Palavra do Antigo Testamento e do Novo Testamento foi recebida por outras nações e por pessoas tão diferentes, porque, embora alguns tenham morrido por causa dessa Palavra, sua propagação por homens uniu nações, sábios e ignorantes à religião anunciada por Jesus por causa de uma força acima desses homens, qual seja, o próprio Jesus Cristo.

Nesses números, Orígenes, ao fundamentar por meio das Escrituras a relação entre Antigo Testamento e Novo Testamento, apresenta o que Umberto Eco escreveu em seu livro, que o Antigo é a figura do Novo Testamento, ou seja, no Antigo Testamento, encontra-se a imagem do Novo. Segundo Orígenes, o Profeta está anunciado, por exemplo, em Gênesis, em Isaías, em Salmos, em Deuteronômio, formando uma linha textual ou um tecido em que cada ponto se interliga a outro. No final da parte 5, ele retoma a ideia de força divina sobre os homens, ao concluir que a audácia daqueles que levaram a Palavra do Evangelho foi um ato sobre-humano porque Deus os dirigia, porque um poder divino os protegia.

Orígenes retoma a divindade de Jesus, afirmando que ela encontra-se no Antigo Testamento; que, antes da vinda de Cristo, a inspiração divina das antigas Escrituras não era fácil de demonstrar com evidência. Aqui, mais uma vez, há no Antigo Testamento a imagem do Novo.

Pela primeira vez, Orígenes fala dos não instruídos, dos que não leem o caráter sobre-humano de cada passagem bíblica. Não há surpresa nisso, pois, no tocante às obras da Providência de Deus, algumas são claras; outras, escondidas. As realidades terrenas, operadas por Deus providente, não são claras como o sol e também não são claras quanto aos acontecimentos humanos. A maneira como o Deus providente opera é claro quanto às almas e aos corpos dos animais, porque nesses a causa e a finalidade são encontrados por aqueles que se interessam pelos instintos, pelas imaginações e pelas naturezas animais e pela constituição dos corpos. Mas a Providência de Deus, que não é clara nas realidades terrestres e nos acontecimentos humanos, não se enfraquece por causa da ignorância humana, pelo menos para aqueles que creem nela. O mesmo ocorre com a divindade das Escrituras, ou seja, elas também não são claras, mas não se enfraquece por causa da ignorância dos leitores, embora essa ignorância (fraqueza) não seja capaz de ressaltar em cada uma de suas expressões o esplendor escondido das doutrinas que está conservado numa redação vulgar e pouco atraente. Aí, de forma brilhante, Orígenes cita 2Cor 4:7, mostrando que, nos vasos de barro (isto é, na fraqueza humana a que ele se referiu), nós temos tesouros para que ele brilhe como é extraordinário o poder de Deus. A Palavra tem poder pela manifestação do espírito e do poder, não pela persuasão das expressões sábias.

Qual o caminho para ler e compreender as Escrituras? Os judeus (os da circuncisão), por causa da dureza do coração e da pouca inteligência, não acreditam em Jesus Cristo como o Salvador e não acreditam porque seguem à letra as profecias que se referem a eles, ou seja, como a letra não possui sentido figurado, ela não é alegoria para eles. Como o sentido literal não se materializou a ponto de o lobo pastar com a ovelha; de a pantera não descansar ao lado do cabrito; de o bezerro, de o touro e de o leão não pastarem juntos e de não serem conduzidos por um menino; de o boi e de o urso não pastarem juntos e de suas crias serem criadas umas com as outras; e de o leão não comer a palha com o boi, os leitores judeus, presos ao realismo da letra, não percebem na palavra seu sentido mais profundo, o espiritual.

Nos Provérbios de Salomão (Pr 22:20-21), Orígenes encontra o caminho para o sentido, para a compreensão das Escrituras. Com os Provérbios, que diz inscrever três vezes na própria alma os pensamentos das Escrituras santas, ele divide o homem em simples (corpo), em alma (psíquico) e em espírito, e assim também são as Escrituras. A fim de exemplificar essa divisão, Orígenes cita a passagem do livro Pastor (Visão II, 4,3), onde Hermes escreverá dois livros, sendo que um será dado a Clemente, que o enviará às cidades de fora; e outro, a Grapté, que advertirá as viúvas e os órfãos. Estes são almas da letra simples; e aqueles das cidades de fora, almas fora das realidades corporais e dos pensamentos deste mundo. Entretanto, algumas Escrituras não têm sentido corporal, fazendo com que só se procure o seu espírito.

Sem a interpretação espiritual, as realidades celestes ou superiores permanecem como símbolos e como sombras. Orígenes especifica ainda mais essa interpretação com exemplos (1Cor 2:7, 1Cor 10:11, 1Cor 10:4, Hb 8:5, Cl 2:16, Hb 8:5) que tecem uma relação entre termos (sabedoria escondida, figuras, modelo, alegorias, sombra) velados sempre por aqueles que são semelhantes a Grapté, alma da letra simples destinada ao sentido corporal das Escrituras. Observa Orígenes: não é inútil o sentido corporal porque ele é capaz de melhorar a maior parte dos homens na medida de suas capacidades.              

Na última parte do livro, seu autor destaca várias passagens bíblicas a fim de mostrar que existe um sentido mais profundo do que está escrito. Um desses exemplos, Ex 16:28: “Cada um de vós estará sentado na sua casa e que ninguém se mova de seu lugar no sétimo dia”. Caso se conduza essa leitura ao seu sentido literal, ao sentido corporal, isto é, a um sentido que reduz a Palavra à superfície, fato histórico e realidade mística não se harmonizam e, com efeito, não se revela o sentido mais profundo do acontecimento. Ora, se lermos de forma literal, o que está escrito em Ex 16:28 não pode ocorrer corporalmente, e Orígenes deixa isso bem claro. O sentido corporal pode diminuir a grandeza do sagrado, porque não se compreende o que a letra apresenta, pois às vezes o que é tomado à letra não é verdade. Precisa-se saber onde ele é verídico e onde não verídico o sentido literal, corporal. Para tanto, Orígenes exemplifica: “Investigai as Escrituras” (Jo 5:39). Uma vez investigadas, entende-se alegoricamente o que não aconteceu segundo a letra, porque, como afirma o autor na página 305, “nossa disposição é aceitar que ela tem sempre um sentido espiritual, mas que não tem sempre um sentido corporal, pois já se demonstrou muitas vezes que o sentido corporal é impossível”.