terça-feira, maio 26, 2009

Um bom texto do caderno Mais!

MALANDROS UTÓPICOS

ENTRE A IDEALIZAÇÃO DO ESTRANGEIRO E A GLORIFICAÇÃO DO MODO DE VIDA NACIONAL, BRASILEIRO CIRCULA ENTRE A ESPERANÇA DE MUDANÇA E A REALIDADE DAS MAZELAS POLÍTICAS E SOCIAIS

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

A "aurora da vida", evocada num poema famoso de Casimiro de Abreu, esteve em evidência nos últimos dias, porém deslocada para um pouquinho mais tarde: três notícias se referiam a crianças de nove anos, e, embora ligadas a assuntos bem diversos, todas provocaram alguma celeuma.

A primeira foi a declaração do jogador Ronaldo sobre os motivos pelos quais prefere que seu filho cresça em Madri: "Vejo aqui crianças da idade dele com um palavreado adolescente, palavrões até. [Meu filho de nove anos] é uma criança doce, educada, praticamente um europeu. (...) Prefiro que tenha amiguinhos europeus, sem a malandragem dos amiguinhos brasileiros." "O nível mental das pessoas que assistem à TV no Brasil é por volta dos nove anos", julga o ator e dramaturgo Miguel Falabella. "Um jovem francês lê 200 vezes mais que um brasileiro. Tem piadas e diálogos que as pessoas não entendem, porque não têm a informação." O terceiro fato foi a escolha de um livro em quadrinhos para os alunos da terceira série do ensino fundamental (oito a nove anos) da rede pública paulista, criticada porque algumas histórias contêm palavrões e alusões de natureza sexual.

Fato e opiniões
Por sua vez, vendo nela só moralismo e hipocrisia quanto à realidade vivida pelas crianças dessa idade, alguns reprovaram a retirada do título da lista fornecida aos estudantes... Que pensar de tal coincidência? Em primeiro lugar, que se trata disso mesmo - uma coincidência, ou seja, algo fortuito, que poderia não ter ocorrido dessa forma.

Se a falha quanto ao livro tivesse sido descoberta uma semana antes ou se Falabella tivesse situado o nível intelectual dos telespectadores na faixa dos seis ou dos 11 anos, não se veria vínculo nenhum entre as três coisas. Além disso, a última é um fato, enquanto as duas primeiras são opiniões; fato, aliás, com o qual a Secretaria de Educação de São Paulo lidou de modo adequado, reconhecendo o erro e tomando as providências que se esperariam.

Realmente, a obra não é apropriada para crianças. O autor de uma das histórias, Caco Galhardo [quadrinista da Folha], explicou que pretendia apenas "tirar sarro" de uma mesa-redonda de futebol. "Quem a selecionou não leu o livro", declarou. É difícil não concordar com o cartunista, mas nem por isso se vão proibir os quadrinhos para adultos ou condenar as editoras que os publicam.

O que ocorreu foi negligência por parte de um funcionário do terceiro escalão, rapidamente reparada por seus superiores. Ponto final. A frase de Miguel Falabella se coloca em outro contexto: a péssima educação oferecida pelo Estado aos pequenos brasileiros, cuja consequência óbvia é o baixo nível intelectual da nossa população.

De fato, os jovens europeus leem mais que os do Brasil - embora lá também se ouçam queixas de que a escola pública vem piorando ano a ano. O padrão abominável da televisão nacional tampouco contribui para minorar o problema, mas isso não se deve a um vício de natureza do meio: depende dos responsáveis pela programação escolherem bons roteiros e os produzirem com critério.


Prova de que pode existir vida inteligente na televisão (e não só nos canais ditos culturais) é a qualidade dos diálogos da série "House" assim como o desempenho dos atores e a excelência da pesquisa técnica que subsidia cada episódio - e se poderiam citar outros (raros) exemplos.

"Doce" e "educado"
Restam os comentários de Ronaldo. A idealização que equipara "europeu" a "doce" e "educado" terá algum fundamento? Talvez o tenha na experiência do jogador: não conheço o suficiente da sua biografia para avaliar isso, mas posso imaginar que no Velho Mundo o filho de um atleta pago a peso de ouro circulasse num ambiente bem menos perigoso e violento do que aquele que cercava seu pai na zona norte do Rio.

Os brasileiros
Costumamos nos deslumbrar com algumas características da vida na Europa que contrastam agudamente com nosso cotidiano: civilidade, limpeza das ruas, eficiência nos serviços públicos, organização em geral.

Na mesma entrevista, Ronaldo se refere ao mundo do futebol e cita aspectos em que os europeus nos superam. Sem masoquismos desnecessários, não vejo mal em reconhecer que determinadas condições são melhores lá do que aqui, mas também é verdade que "doce" e "educado" nem sempre rimam com "europeu". Ou alguém ignora que o velho continente foi palco de inúmeras guerras, perseguições religiosas e políticas, discriminações, fogueiras, torturas e crueldades? E os conquistadores que de lá partiram se mostraram tudo, menos doces para com os índios, africanos e asiáticos com os quais as navegações (e depois o colonialismo) os puseram em contato.

Isso dito, convém evitar a idealização inversa, que conduziria a glorificar a brasilidade e fechar os olhos para as mazelas do nosso país. Outro tema em foco nas últimas semanas o comprova: a reação oposta diante dos desmandos dos políticos no Brasil e na Inglaterra.

Enquanto o presidente da Câmara dos Comuns, Michael Martin, se viu forçado a renunciar devido às pilantragens dos seus colegas, temers e sarneys agem de modo a convalidar o que disse o deputado Sergio Moraes (PTB-RS), cuja frase imortal ("estou pouco me lixando para a opinião pública") deveria adornar o estandarte do Congresso, do mesmo modo que "ordem e progresso" figura na bandeira nacional.

Truculência
E não é apenas Sua Excrescência que assim pensa. O Estado brasileiro tem uma tradição de truculência e malandragem na relação com os governados. Com demasiada frequência, seus funcionários consideram natural que o dinheiro dos impostos financie privilégios indecentes para eles, para suas famílias e para seus apadrinhados; a cultura do "todos fazem" e do "deixa disso" impregna muitos setores da sociedade civil, inclusive o das concessionárias de serviços públicos e das empresas em geral.

É o que sabem todos quantos já tentaram falar com os SACs (serviços de afronta ao consumidor), hipocritamente colocados atrás de muralhas telefônicas cujo objetivo evidente é fazer com que o reclamante desista da sua pretensão.

A conclusão é que as afirmações de Ronaldo e Falabella, embora generalizadoras demais, contêm algo de verdadeiro - e quem sabe por isso incomodaram tanto. Não é preciso endossá-las por completo; se servirem como alerta, terão contribuído para nos tornar mais veementes na defesa dos nossos direitos. Afinal, às vezes as aves que lá gorjeiam são mesmo mais afinadas que as de cá.

RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

Cardioacre

A iniciativa privada gosta de contar vantagem sobre o setor público. "Somos mais eficientes", compara-se. Não é o caso da Cardioacre, uma clínica particular de Rio Branco. Sua secretária alterou meu batimento cardíaco.

Na primeira vez, ela marcou a consulta para um dia. Quando o dia marcado chegou, só fiquei sabendo que não era mais o dia marcado dentro da clínica, ou seja, a secretária não telefonou para avisar antes de eu gastar dinheiro com passagem de ônibus.

Ela então marcou a consulta em uma terça-feira, uma semana depois. Quando cheguei à clínica, soube que o médico não atende na terça-feira. Ela diz então que telefonará para marcar outro dia. Um mês depois, ela não telefona.

Vou à clínica. Ela marca para 27 de maio. No dia 26 de maio, a secretária telefona: "Olha, foi cancelada a sua vinda amanhã, estou remarcando para 25 de junho, obrigada por sua compreensão."

Desde o dia em que essa secretária cruzou com o meu destino, meu coração não tem sido o mesmo. Acho que colocarei o nome dela numa encruzilhada.

Se fosse no setor público...