sábado, setembro 06, 2008

Árcade



O amor triunfante,

de Caravaggio


De
Aldo Nascimento

Em 4 de agosto de 1645, Descartes cita em sua carta a Elizabeth um livro de Sêneca, De Vita Beata [Sobre a Vida Feliz]. Mesmo tão distantes no tempo, ano 4 a.C e século 17, algo nessa carta os aproxima: a razão. Para ser contente consigo mesmo, Descartes nos ensina que devemos manter a firme e a constante resolução de executar tudo quanto a razão nos aconselhar, sem que nossas paixões ou nossos apetites nos desviem. No final, ele afirma que Sêneca nos ensinou a regrar nossos desejos.

No mesmo século, em 1690, cria-se na Itália a Arcádia, arte que disciplina o desejo dos amantes segundo as virtudes da razão. Sim, regular, ordenar, racionalizar, mas o que é o desejo a ponto de a razão querer policiá-lo? Antes de seguir a origem da palavra desejo, saibamos que, da união entre o deus Zeus e a mortal Calisto, surgiu Árcade, um semideus a civilizar uma região da Grécia onde habita o deus Pan, representante do desejo. Se procurarmos no dicionário, “arc” significa também “limite”. Árcade, portanto, para civilizar, limita o que Pan representa. Mais uma vez, a razão estrema o desejo.

Retorno à pergunta: o que o desejo é a ponto de a razão querer policiá-lo? Desejo deriva do verbo desidero, e desidero deriva do substantivo sidera. Conjunto de estrelas, ou seja, espaço sideral. Quem olha para a constelação percebe que os astros movem-se segundo a ordem da natureza, segundo a razão. Romper com sidera significa não mais consultar a ordem dos astros a fim de saber sobre o destino. Tamanha cisão ocorre por causa de desidero, por causa do desejo. Ora, a igreja, por exemplo, mantém-se conforme um conjunto a serviço da unidade. Ao se afastar desse conjunto, dessa ordem externa; ao negar a harmonia do todo, o desejo é perda que desequilibra a igreja, a família, o Estado, o Arcadismo.

O amor triunfante, pintado por Caravaggio em 1602 (foto), mostra Eros, representante também do desejo, com uma força que destrói o equilíbrio da razão. Esse artista italiano pertence ao Barroco, escola oposta aos princípios do Arcadismo.