terça-feira, agosto 18, 2009

"Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos"

Segundo a crítica, a estreia da carioca Ana Paula Maia na literatura não poderia ter sido melhor. Sua narrativa desenha personalidade. Muito atual, a temática violência me seduz, por isso comprarei suas palavras para entender o Brasil deste século 21.



Leia esta belíssima resenha.

Jovem escritora aborda violência com estilo e preocupação social
DANIEL BENEVIDES

Colaboração para o UOL

A carioca Ana Paula Maia aborda a violência de maneira impiedosa e sem concessões

LEIA TRECHO DE "ENTRE RINHAS DE CACHORROS..."
A violência assume várias formas, muitas delas moldadas pelo mesmo motivo: a desigualdade. Partindo desse princípio simples e universal, a carioca Ana Paula Maia compôs duas novelas complementares, com muito sangue, escatologia e estilo.

Lançadas em capítulos pela internet, nos moldes dos antigos folhetins, "Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos" e "O Trabalho Sujo dos Outros" são habitadas por personagens sujos, feios e, na falta de melhores opções, malvados. São, como revela a escritora numa breve apresentação, "homens-bestas", que fazem "toda a imundície de trabalho que nenhum de nós quer fazer".

Na primeira história, "pulp" ao extremo, no sentido de polpa mesmo, de massa de carne misturada com sangue, tripas, excremento, Edgard Wilson e Gerson vivem de matar e destrinchar porcos (não à toa, símbolos da sujeira, que se alimentam de lixo). É um serviço que fazem sem emoção, inertes, indiferentes. A morte e o sofrimento parecem tão corriqueiros quanto o calor sufocante do subúrbio onde vivem, a rala comida no prato, o colchão esquelético onde dormem. Para completar o quadro, a maior diversão dos dois amigos - talvez a única -, é apostar em duelos mortais entre cachorros.

Diante disso, um assassinato com extrema crueldade é apenas mais um fato do cotidiano, um mero problema a resolver - o próprio termo "crueldade", por mais que a violência tenha chegado ao limite do impensável, nem faz sentido, pois na aridez estéril do cenário em que se movem os personagens, totalmente à margem da sociedade (que sociedade, cara-pálida?), os valores sequer existem.

O(a) leitor(a), à essa altura, já percebeu que a escrita de Ana Paula Maia é impiedosa, que não faz nenhuma concessão. Suas palavras surgem como elementos secos, pedaços de osso que vão montando o esqueleto de um monstro bastante familiar, que nada mais é do que a realidade da qual a gente se acostumou a desviar o rosto. "A minha principal inspiração é o mundo real e suas deformidades. Nas artes, a literatura de Campos de Carvalho, a música de Johnny Cash e os filmes de Sergio Leone", ela declarou numa entrevista recente. A Leone poderíamos acrescentar Tarantino e Takeshi Kitano, como lembra a crítica Beatriz Resende.

Na segunda história, é mais evidente o lado político da autora, que se manifesta na investigação crua da condição humana, da imposição do trabalho, da resignação sem saída: "A minha intenção com a literatura é fazer minha política e estabelecer através da ficção uma série de códigos de ética, de conduta e investigação. Acho que a literatura tem algumas funções importantes como o autoconhecimento e a especulação do espírito humano".

"O Trabalho Sujo dos Outros" acompanha o dia a dia de Erasmo Wagner (há alguma ironia na escolha dos nomes), lixeiro, morador da região contínua de miasmas azedos, verdadeiro soldado desconhecido. Seus amigos são Alandelon e Edivardes (não falei?), que trabalham com britadeira no asfalto, tremendo os miolos sob o sol cáustico, e na limpeza da gordura acumulada nas pias e esgotos de bares e restaurantes.

A simbologia é explícita, o que não torna a novela menos impactante. Nas entrelinhas brutais do relato surge um bode com poderes místicos, cujo cheiro contamina cada parágrafo. É, talvez, o "bode" da literatura bem comportada, feita de beletrismos e frases harmônicas, de falta de compromisso com a realidade, de sujeição à acomodação. Daí a marca forte de Ana Paula Maia, que veio para ficar.

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"ENTRE RINHAS DE CACHORROS E PORCOS ABATIDOS"
Autora: Ana Paula Maia
Editora: Record
Número de páginas: 160
Preço sugerido: R$ 29

Tua vulgaridade me assombra, menina

Não posso neste espaço incidir luz sobre o nome dela, por isso deixo sua identidade ocultada. Só posso afirmar que seu jeito de andar e de falar conduz 15 anos da mais grosseira e gosmenta vulgaridade.

Não, enganei-me, ela não nasceu há 15 anos, parece ter mais idade. Entranhada em sua roupa, em seu sapato alto, em seu rímel, a vulgaridade a envelheceu. Velha em um corpo que exibe as deformações de seus 15 anos.

Desde Vladimir Nabokov, Lolitas espalham-se; porém, no caso dessa menina-velha de 15 anos, não existe a inocência inicial da protagonista do autor russo. A malícia evidencia-se para agredir sua própria idade, para agredir sua mãe.

Sua origem a rejeita. Expulsa de casa, seu rosto pintado perambula entre programas e conselho tutelar. Não me refiro a programas educativos na TV, longe disso, mas a programas cujo canal é outro. Quanto ao conselho, ela, aos 15 anos, não aceita conselhos, muito menos ser tutelada. Velhas são independentes.

Essa velha vulgar de 15 anos, entretanto, não espera a morte como tantas outras velhas de 70 ou de 80 anos. Nela, algo já morreu: a juventude.