domingo, dezembro 06, 2009

Feijoada modernista














Em "Macunaíma", Mário de Andrade
pintou a iguaria como síntese das identidades nacionais

CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Feijoada acaba com a gente. Por isso o dia é sábado, quando se pode jiboiar. Mas, dizem, foi inventada por escravos. O paradoxo: escravos trabalhavam de sol a sol, como criariam coisa indigesta por vontade própria?

Comiam mesmo o pão que o diabo amassou; não podiam contribuir para a dieta nacional. "Contribuição" supõe liberdade; sem ela não há criação literária ou culinária.

A feijoada deriva do "feijão gordo" enriquecido ao extremo, a ponto de se tornar prato único. Ela só é compreendida dentro do seu ritual: feijão preto e pertences, a caipirinha de cachaça (moeda líquida do tráfico negreiro) e a evocação histórica da nacionalidade. A minifeijoada de boteco na quarta-feira retroage, volta a ser feijão gordo.

No final do século 18 carioca, a alimentação dos escravos estava lastreada em feijão preto, farinha de mandioca, laranjas e bananas; além das carnes secas ou toucinhos que os próprios negros podiam comprar com o produto da venda das suas hortaliças. A origem deve ter sido essa.

Mas, um século depois, ela ainda não era um "prato completo", segundo o folclorista Câmara Cascudo [1898-1986], que sugere que ela se difundiu como tal em hotéis e pensões.

Foram os modernistas que projetaram a feijoada como prato nacional. Eles tinham necessidade enorme de novos signos para a brasilidade.

A questão estética e política era "acharmos a nossa expressão" em vários planos, e nada melhor do que o popular feijão, a evocação do cozido português, dos embutidos e pedaços de porco, além da couve.

Mário de Andrade, em "Macunaíma" (1928), desenhou uma cena imorredoura: a feijoada na casa do fazendeiro Venceslau Pietro Pietra. Uma alegoria da cozinha nacional e daqueles seres étnicos que o Brasil colocou em contato.

O festim é presidido por Venceslau (peruano, italiano, Piaimã), um demônio devorador de gente ou "comedor de identidades", conforme interpreta a crítica literária.

O tema da antropofagia, da deglutição cultural, esteve presente em toda a produção modernista, e a feijoada é um caso particular seu.

Esse festim de "Macunaíma" foi magnificamente carnavalizado no filme homônimo (1969), de Joaquim Pedro de Andrade.

E a graça da evocação continuou com Vinicius de Moraes ("Feijoada à Minha Moda"), que ensinou, em versos engordurados, como fazer uma feijoada sabática.

Ingredientes
O feijão é coisa quase universal. Mas, enquanto o preto e o rajado "igualam" as classes sociais, o fradinho e o jalo diferenciam preferências de ricos e pobres. Feijão preto é dominante somente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. O tempero relevante da feijoada é a propriedade metonímica de reter o passado de escravidão na cor do feijão, subvertendo o seu sentido.

Dentro e no entorno, a feijoada congraça índios, negros e brancos, esquecendo que se comiam: uns foram dizimados, outros feitos escravos; outros, sempre colonizadores cruéis.

A feijoada, como alegoria, é o substrato alimentar da irmandade mística dos contrários -a nação mestiça-, desejada e vista como original do Brasil desde "Casa-Grande e Senzala" (1933), de Gilberto Freyre.

Coisa de intelectuais, estamos entendidos.

E nada mais "cabeça" do que a "Dialética da Feijoada" (1986), de Renato Pompeu, com o prato feito metáfora das relações de classe e da dependência diante do imperialismo.

Como ele escreveu, "consagrada pela intelectualidade influenciada pela industrialização, [ela] tem de enfrentar outros pratos simbólicos, e a sua afirmação como prato nacional-popular tem de ser considerada ainda um processo em andamento".

Joãosinho Trinta, o carnavalesco, poderia reformular sua frase célebre: "Quem gosta de pobreza, e da riqueza da feijoada, é intelectual".

Porque pobre celebra mesmo com churrasco de boi, a carne dos ricos, e cerveja. Assim, as classes sociais se devoram, de modo cruzado, à mesa. Da deglutição restam, incólumes, só os ossos do ofício e os do rabo do porco.

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CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo,
autor de "A Formação da Culinária Brasileira" (Publifolha), entre outros livros.