terça-feira, junho 24, 2014

Uma resenha sobre um livro de Umberto Eco

As pinceladas da fé nos quadros da arte medieval

Resenhado por Aldo Antônio Tavares do Nascimento

ECO, Umberto.  Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010.

            Observe este mural na igreja de São Clemente, Quatro apóstolos, do século XII; repare os corpos estáticos, suas expressões invariáveis, volumes e dimensões uniformes, figuras chapadas que anulam toda ilusão de movimento. Com suas imagens que desconsideram tamanho, forma, proporções, volume, cor, nossos olhos contemplam a arte mais típica da cultura medieval, a românica, que prevaleceu por toda a Alta Idade Média (476-1000).
            Movimento. Ele virá pelo norte europeu, assim como o espaço, a luz, a cor, enfim, a composição extensiva da cultura popular e da natureza. No sul, permanecia a influência da arte bizantina, presa ainda às formas fixas, com o seu hieratismo (invariável), a frontalidade, tricromatismo (normalmente o azul, o dourado e o ocre), isocefalia, isodactilia e hierarquia dos espaços (figuras mais sagradas para as menos sagradas). Mais do que arte, a pintura bizantina é dogma.
            Romper com o imóvel. O nome que pincelou profundas rupturas foi Giotto di Bondone (1266-1337), sendo seu maior trabalho na Capella degli Scrovegni, onde retrata cenas da Virgem Maria e da Paixão de Cristo, entre 1303 e 1310. Até conceber a impressão do movimento em sua pintura, um longo período de agonia conceitual atravessou décadas da Idade Média, podendo ser lido tamanho enfrentamento na obra que motiva este artigo, Arte e beleza na estética medieval, publicada em 1987. Entretanto, para que suas páginas fossem lidas no Brasil, elas só foram ancoradas em nossa língua em 2010, após 23 anos.
            Nascido em Alexandria, em 1932, Umberto Eco escreveu esse livro como quem caminha por trilhas conceituais, isto é, por serem estreitas as trilhas, os detalhes de seus passos ampliam nossa visão do que seja a estética do pensamento cristão medieval, por exemplo, não podemos separar a moral da arte porque nesse período a natureza refletia a transcendência de Deus. A consciência da beleza, portanto, é dado metafísico.
            Entretanto, para além dos conceitos pensados por sacerdotes, havia o gosto do homem comum, do artista e do amante das coisas de arte, voltados, vigorosamente, para aspectos sensíveis. Por isso, os sistemas doutrinais da Igreja justificavam e dirigiam esse gosto a fim de que o sensível não ultrapassasse o espiritual. Ao cruzar dois conceitos (metafísico e sensível), a filosofia cristã admite um saber-deleite com a finalidade de melhor amar a Deus, podendo o cristão, portanto, ajoelhar-se diante do amor ornamental. Nessa interseção conceitual, que é reação ao mundano (sensível) e a tensão para o sobrenatural (metafísico) para que os olhos serenos contemplem as coisas do mundo, repousa-se, nesse contraste, nesse ponto de encontro, ela: a paz dos sentidos.
            Duas correntes místicas (a Ordem de Cister, os cistercienses, e a Ordem dos Cartuxos), sobretudo no século XII, opõem-se ao luxo e às figuras na decoração das igrejas: seda, ouro, prata, vitrais coloridos, esculturas, pinturas, tapetes. São Bernardo de Claraval (1090-1153), monge cisterciense, lança-se contra esses supérfluos ou percepções porque eles desviam os fiéis da piedade e da concentração da prece. Patrono da Ordem dos Templários, São Bernardo escreveu as regras dos cavaleiros; pensou a cristandade como força militar, mesma rigidez conceitual concebida na arte.
            Embora houvesse o rigorismo místico de São Bernardo, havia também uma mística que se voltava para o mundo sensível, a do agostiniano Hugo de São Vítor (1096-1141), teólogo mais famoso antes de Santo Tomás de Aquino. Por meio de seu pensamento, o deleite estético provém, efetivamente, do fato de que o ânimo, a alma, reconhece na matéria a harmonia de sua própria estrutura. (ECO, pág. 31). Mas até chegar ao subjetivo de um gosto estético foi um longo percurso. Antes dessa consciência, entretanto, o belo, para o homem medieval, deveria coincidir com o bom. Suger (1081-1151), abade de Saint Denis, concebe a casa de Deus como espaço acolhedor da beleza, encontrando em Salomão e em Pseudo-Dionisio sua justificativa. Suger quem permite a arte gótica no cristianismo. Segundo Erwin Panofsky (1892-1968), o abade concebia a arte como obra teológica, ou seja, o belo associava-se ao que é útil, porque, transmitida pela antiguidade e passada de Cícero a Agostinho e de Agostinho a toda Escolástica, essa ideia afirma que aquilo que é belo é belo em função de algo. No sínodo de Arras, em 1025, havia iniciada uma campanha para permitir aquilo que os simples não pudessem entender por meio da escritura deveria ser aprendido pelas figuras. A pintura deve, pois, embelezar a casa de Deus, revocar a vida dos santos e o deleite dos incultos; um dos problemas da estética escolástica, todavia, foi precisamente o da integração da metafísica do belo com os valores, por exemplo, da unidade, da verdade, da bondade. (ECO, pág. 42).
            Manifestado na visão estética do cosmo, o belo pertence à ordem e, por isso, é propriedade estável e não sentimento poético de admiração. Sistematizado pela filosofia Escolástica conforme a tríade sapiencial (numerus, pondus e mensura; ou modus, forma e ordo; ou substantia, species e virtus; ou ainda constat, congruit e discernit), a Escolástica pensará o belo como noção de propriedades transcendentais, quais sejam, unidade, verdade e bondade, todas retiradas do pensamento grego. Podendo ser pensado como um transcendental, o belo cristão, nos séculos XII e XIII, revive a kalokagathia grega ou a unidade kalos kai agathos (belo e bom), possibilitando a harmônica conjunção de beleza física e virtude.
            Além da arte gótica (segundo parágrafo), que permitiu uma ruptura com a arte bizantina, a espiritualidade franciscana, envolvida com grupos populares, com a realidade material do mundo, com a contemplação da natureza, com o otimismo da vida e com a beleza dos elementos, também influenciou para que fosse percebida na arte a presença do sensível. Não por outro motivo que Giotto expressa o naturalismo da sensibilidade franciscana, podendo ser apreciado na obra A morte de São Francisco.  A presença do sensível, conforme a Ordem Franciscana, veio à luz em 1245, na forma de Summa theologica, obra dos frades Jean de la Rochelle, Frater Considerans e Alexandre de Hales, mas dita Summa fratris Alexandri. Nela, belo refere-se à causa formal, entendendo como forma o princípio substancial de vida, sendo, portanto, ideia aristotélica. “Chamo forma a essência de cada coisa e a substância primeira”, afirma o pensador em sua Metafísica. Assim sendo, a beleza é a disposição da forma em relação ao exterior. Na Summa, bem e belo fundam-se na forma concreta das coisas. Mas, por prudência dos franciscanos, o belo ainda não pertence à série dos transcendentais. Somente após cinco anos, em 1250, São Boaventura escreve em um opúsculo as quatro condições do ser: uno, que concerne à causa eficiente; verdadeiro, à formal; bom, à final; e belo, que abraça todas as causas e é comum a elas. Sendo o belo uno, verdadeiro e bom, o belo atravessa todos os transcendentais.

            Alberto Magno influencia Tomás de Aquino
            Mestre de Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno (1193/1206-1280) retoma dos franciscanos “o belo fundado na forma de uma coisa” por meio de um comentário que, sob o título de De pulchro et bono, figurou por longo tempo entre os Opuscula de Santo Tomás. Para Alberto Magno, “a essência universal do belo consiste no esplendor da forma sobre as partes proporcionais da matéria ou sobre as diversas forças ou ações”. Com isso, permite-se que o belo passe a pertencer verdadeiramente a todo ente a título metafísico. Ao dizer forma e partes proporcionais da matéria, vê-se uma Idade Média inspirada no hilemorfismo aristotélico, isto é, a forma (morfe) compõe-se com a matéria (hyle) para dar vida à substância concreta e individual (ECO, pág. 60). Segundo Alberto, há no hilemorfismo várias tríades de origem sapiencial ou intelectual, quais sejam, modus, species e ordo; numerus, pondus e mensura. Essa “matemática do belo”, todavia, não considera a referência ao ato humano conhecedor como constitutivo do belo em sua própria ratio, sendo, portanto, uma estética marcada por um rigoroso objetivismo. A percepção do outro ainda não existe. Há outro objetivismo: o de que o belo, embora seja propriedade transcendental do ser, revela-se em uma relação em que o homem focaliza o objeto, e esse é pensado por ele - Santo Tomás de Aquino.
            Para chegar à matemática, à lei dos números, Umberto Eco conduz o leitor ao capítulo 3. Depois, amplia essa concepção de estrutura, cuja gênese é Pitágoras. Na condição de causa, princípio, ninguém pode compreender o belo sem antes atravessar o caminho reto dos geômetras, qualquer semelhança com Platão em Timeu, obra onde as formas matemáticas estruturam a Ordem (Cosmo), não é mera coincidência. 
            A arte sensível de um santo
            No capítulo 7 (parte 7.4), Eco escreve que, ao retomar as noções estéticas propostas por Alberto Magno, Tomás de Aquino ocupa-se da visão subjetiva do belo, o que seu professor desconsiderou. Para confirmar essa divisão entre mestre e discípulo, Umberto Eco retira um exemplo da Suma Teológica I, onde bem e belo amalgamam-se na forma, na substância, no que sustenta, isto é, na estrutura. O subjetivo emerge em Tomás porque belas são chamadas as coisas que despertam prazer quando vistas e, se despertam, é porque nossos sentidos deleitam-se nas coisas bem proporcionadas. Em Tratados das Enéadas, Plotino (205 d. C.-270 d.C.) concebe o belo como simetria das partes para haver a harmonia do conjunto. Tanto proporção quanto simetria são conceitos que alinham o belo à matemática, ou matematismo e belo formam um só cálculo. Os sentidos então são uma espécie de proporção, uma espécie de simetria.
            Foi dito antes que bem e belo fundam-se na forma, sendo que o bem faz com que a forma seja objeto de apetite porque todo ente deseja o bem; o belo, ao contrário, coloca a forma em relação com o puro conhecimento, por ser ele, o belo, aquilo cujo conhecimento causa prazer. Sendo assim, olhar é conhecer, e o deleite estético não passa de uma consequência desse conhecimento, visto que esse ato de adesão deleitosa é determinado pelo belo ou pelas formas matemáticas. A ideia de Tomás traz o subjetivo; ele, porém, é determinado pelo belo ou por conceitos matemáticos, cujo propósito implica apaziguar os sentidos, os apetites. Diferente de Tomás de Aquino, o ato de adesão deleitosa pode ser muito bem um livre ato de efusão concedida à coisa e não determinada por ela, e quem pensa assim é João Duns Escoto (1265-1308), para quem a visão estética é uma faculdade livre, pois seus atos sujeitam-se ao império da vontade. Longe de ser coincidência, essa faculdade livre - subentendam-se as experiências -, Escoto pertence à ordem franciscana, a mesma ordem de Roger Bacon (1214-1294) e de Robert Grosseteste (1168-1253). Todos estudaram na Universidade de Oxford e, entre eles, existe esta linha mestra de conhecimento, qual seja, a experimentação ou a vontade do sujeito.
            Penso ter ofertado uma ideia do que seja este significativo livro de Umberto Ecos. No capítulo 8, Santo Tomás e a Estética do Organismo, o autor detalha mais ainda o que esse pensador conceitua o belo; porém, como início, apresentei uma linha de raciocínio em que pontos importantes foram relacionados.           
             
                 

segunda-feira, junho 23, 2014

Antes do jogo Brasil e Camarão


Hoje, em muitas escolas, não se estuda gramática - erro que deixará um débito enorme para o futuro.

Estou estudando Immanuel Kant, mas pararei a leitura pouco antes do jogo entre Brasil e Camarões, depois retornarei.

Suas orações e seus períodos são longos, um tipo de estrutura sintática que não facilita a compreensão. Sem compreensão de gramática, torna-se mais difícil.

Por exemplo, repare nessas relações entre orações:

Se, quando se assume que o nosso conhecimento por experiência se regula pelos objetos como coisas em si mesmas, verifica-se que o incondicionado não poderia ser pensado sem contradição; se, ao contrário, quando se assume que a nossa representação das coisas, tal como nos são dadas, não se regula por estas como coisas em si mesmas, mas os objetos é que se regulam pelo nosso modo de representação, verifica-se que a contradição desaparece; se, portanto, o incondicionado tem de ser encontrado não nas coisas enquanto as conhecemos (enquanto nos são dadas), mas sim nelas enquanto não as conhecemos, enquanto coisas em si mesmas: assim se evidencia que tem fundamento aquilo que, no começo, assumíamos  apenas a título de tentativa.

Sem gramática, porque ela estuda estruturas, não se entende Kant. Depois de saber a estrutura, estudam-se os conceitos kantianos e a relação entre eles, mas sabendo que a relação entre eles depende da estrutura, porque a estrutura já é relação.   
  



Por falar em jogo...
 

domingo, junho 08, 2014

A Culpa é das Estrelas


Hoje, fui ter com a Mony um dos prazeres de nosso encontro de 9 anos: assistir a mais um filme. Amo sair com ela para ficar diante da película ou diante de um palco de teatro.

Já foram tantos os filmes e muitas as peças que sinto saudade de tudo e, estranho, saudade do que virá. 

As imagens dessa vez vieram de "A Culpa das Estrelas". Ótimo filme!




sábado, junho 07, 2014

A Pessoa em Santo Tomás de Aquino

A fé e a razão de Santo Tomás de Aquino leram textos ficcionais da Grécia Antiga. No livro “Por trás das palavras - manual de etimologia do português”, de Mário Eduardo Viaro, o sentido original de ficção é “formação”. Do teatro grego, que nos remete à personagem, Tomás retirou o sentido de pessoa (persona), que significava “máscara”. Assim, por ser máscara, a pessoa é a guardiã de algo e, dessa forma, por trás da máscara, guarda-se o mistério da pessoa. Os estudos de Tomás o desvelam.
  
Seguindo os passos de Aristóteles, Tomás de Aquino afirma que pertence à natureza do homem ser ajudado por outros homens, porque não é possível um homem só abarcar todo conhecimento pela razão, por isso ser necessário viver em multidão a fim de que “a mão lave a outra mão”. Para o autor da “Suma Teológica”, é natural, portanto, que o homem viva em sociedade. Dito isso, emerge, entre tantos homens, isto é, a multidão, a definição de pessoa. Sabemos que todos os seres possuem a totalidade em si, mas também possuem a individuação própria que os distingue dos demais seres. O ser humano é definido como pessoa, segundo Tomás, não apenas pela alma, mas pela alma e pelo corpo. Ora, é por meio destes compostos que a pessoa subsiste. O homem não é uma pessoa simplesmente porque tem uma alma, mas é uma pessoa pela alma e pelo corpo, já que é por meio de ambos que subsiste. Entendida como substância primeira ou hipóstase, eis a pessoa.

Entretanto, a natureza humana não corresponde à pessoa tomasiana, porque, como a singularidade humana subsiste em corpo e em alma, isto é, subsiste na pessoa, o humano singular é mais do que a natureza humana porque em si a singularidade possui elementos e características que não se encontram na natureza humana. O que faz com que Santo Tomás de Aquino seja Santo Tomás de Aquino não se encontra em todos os homens, mas tão somente em Santo Tomás de Aquino, sendo, pois, o singular de sua existência à sua pessoa. O existir tomasiano é constitutivo da pessoa, isto é, a pessoa é que tem a existência ou, se quiser, o indivíduo tem a sua existência por intermédio da pessoa. É a pessoa que existe e não a natureza humana individualizada. Mas, quando se fala em existir, não se fala de um existir qualquer, mas de um existir racional, de um existir que busca conhecer e se conhecido, que busca pensar e ser pensado, por isso, entre outras substâncias, Santo Tomás de Aquino diz que os indivíduos de natureza racional têm o nome especial de pessoa, que aqui se define conforme Boécio: “uma substância individual de natureza racional”. E livre. Entendamos aqui como racional que a pessoa não está fadada a agir somente por causalidade natural, mas podendo desencadear uma causalidade própria.

 Se por um lado podemos interpretar que a pessoa existe sob a máscara, também podemos por outro admitir que a própria máscara é a pessoa. Assim sendo, nas comédias e nas tragédias gregas, representavam-se personagens célebres, e o termo pessoa veio a designar aqueles que estavam constituídos em dignidade. Personalidades são aqueles, portanto, que detêm alguma dignidade, ou seja, aqueles que detêm o merecer.

Pelo que já foi escrito até aqui, é correto então afirmar que o tema da pessoa em São Tomás une sua filosofia à teologia? Penso que a teoria da pessoa é um ponto de interseção entre filosofia e teologia no pensamento escolástico de Santo Tomás de Aquino. Sendo a pessoa amálgama entre corpo e alma, isto é, entre o sensível e o suprassensível, Santo Tomás, oposto ao platonismo, concebe o corpo não como túmulo, mas como meio inevitável para se chegar a uma dignidade para além do próprio corpo. Ao pensar a experiência do corpo por meio da filosofia de Aristóteles, que inclui o sensível, Tomás, por meio da teologia, oferta ao sensível a sua transfiguração, pois a pessoa também é alma, conceito que permite ao humano a transcendência.