As pinceladas da fé nos quadros da
arte medieval
Resenhado por Aldo Antônio Tavares do Nascimento
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Observe este mural na igreja de São
Clemente, Quatro apóstolos, do século
XII; repare os corpos estáticos, suas expressões invariáveis, volumes e
dimensões uniformes, figuras chapadas que anulam toda ilusão de movimento. Com
suas imagens que desconsideram tamanho, forma, proporções, volume, cor, nossos
olhos contemplam a arte mais típica da cultura medieval, a românica, que
prevaleceu por toda a Alta Idade Média (476-1000).
Movimento. Ele virá pelo norte europeu,
assim como o espaço, a luz, a cor, enfim, a composição extensiva da cultura
popular e da natureza. No sul, permanecia a influência da arte bizantina, presa
ainda às formas fixas, com o seu hieratismo
(invariável), a frontalidade, tricromatismo (normalmente o azul, o
dourado e o ocre), isocefalia, isodactilia e hierarquia dos espaços (figuras mais sagradas para as menos
sagradas). Mais do que arte, a pintura bizantina é dogma.
Romper com o imóvel. O nome que
pincelou profundas rupturas foi Giotto di Bondone (1266-1337), sendo seu maior
trabalho na Capella degli Scrovegni, onde retrata cenas da Virgem Maria e da
Paixão de Cristo, entre 1303 e 1310. Até conceber a impressão do movimento em
sua pintura, um longo período de agonia conceitual atravessou décadas da Idade
Média, podendo ser lido tamanho enfrentamento na obra que motiva este artigo, Arte e beleza na estética medieval,
publicada em 1987. Entretanto, para que suas páginas fossem lidas no Brasil, elas
só foram ancoradas em nossa língua em 2010, após 23 anos.
Nascido
em Alexandria, em 1932, Umberto Eco escreveu esse livro como quem caminha por
trilhas conceituais, isto é, por serem estreitas as trilhas, os detalhes de
seus passos ampliam nossa visão do que seja a estética do pensamento cristão
medieval, por exemplo, não podemos separar a moral da arte porque nesse
período a natureza refletia a transcendência de Deus. A consciência da beleza,
portanto, é dado metafísico.
Entretanto,
para além dos conceitos pensados por sacerdotes, havia o gosto do homem comum,
do artista e do amante das coisas de arte, voltados, vigorosamente, para
aspectos sensíveis. Por isso, os sistemas doutrinais da Igreja justificavam e
dirigiam esse gosto a fim de que o sensível não ultrapassasse o espiritual. Ao
cruzar dois conceitos (metafísico e sensível), a filosofia cristã admite um saber-deleite
com a finalidade de melhor amar a Deus, podendo o cristão, portanto, ajoelhar-se
diante do amor ornamental. Nessa
interseção conceitual, que é reação ao mundano (sensível) e a tensão para o
sobrenatural (metafísico) para que os olhos serenos contemplem as coisas do
mundo, repousa-se, nesse contraste, nesse ponto de encontro, ela: a paz dos
sentidos.
Duas correntes místicas (a Ordem de
Cister, os cistercienses, e a Ordem dos Cartuxos), sobretudo no século XII, opõem-se
ao luxo e às figuras na decoração das igrejas: seda, ouro, prata, vitrais
coloridos, esculturas, pinturas, tapetes. São Bernardo de Claraval (1090-1153),
monge cisterciense, lança-se contra esses supérfluos ou percepções porque eles
desviam os fiéis da piedade e da concentração da prece. Patrono da Ordem dos
Templários, São Bernardo escreveu as regras dos cavaleiros; pensou a
cristandade como força militar, mesma rigidez conceitual concebida na arte.
Embora
houvesse o rigorismo místico de São Bernardo, havia também uma mística que se
voltava para o mundo sensível, a do agostiniano Hugo de São Vítor (1096-1141),
teólogo mais famoso antes de Santo Tomás de Aquino. Por meio de seu pensamento,
o deleite estético provém, efetivamente, do fato de que o ânimo, a alma,
reconhece na matéria a harmonia de sua própria estrutura. (ECO, pág. 31). Mas
até chegar ao subjetivo de um gosto estético foi um longo percurso. Antes dessa
consciência, entretanto, o belo, para o homem medieval, deveria coincidir com o
bom. Suger (1081-1151), abade de Saint Denis, concebe a casa de Deus como
espaço acolhedor da beleza, encontrando em Salomão e em Pseudo-Dionisio sua
justificativa. Suger quem permite a arte gótica no cristianismo. Segundo Erwin
Panofsky (1892-1968), o abade concebia a arte como obra teológica, ou seja, o belo associava-se ao que é útil, porque,
transmitida pela antiguidade e passada de Cícero a Agostinho e de Agostinho a toda
Escolástica, essa ideia afirma que aquilo que é belo é belo em função de algo.
No sínodo de Arras, em 1025, havia iniciada uma campanha para permitir aquilo
que os simples não pudessem entender por meio da escritura deveria ser
aprendido pelas figuras. A pintura deve, pois, embelezar a casa de Deus,
revocar a vida dos santos e o deleite dos incultos; um dos problemas da
estética escolástica, todavia, foi precisamente o da integração da metafísica
do belo com os valores, por exemplo, da unidade, da verdade, da bondade. (ECO,
pág. 42).
Manifestado
na visão estética do cosmo, o belo pertence à ordem e, por isso, é propriedade
estável e não sentimento poético de admiração. Sistematizado pela filosofia Escolástica
conforme a tríade sapiencial (numerus,
pondus e mensura; ou modus, forma e ordo; ou substantia, species e virtus; ou ainda constat,
congruit e discernit), a Escolástica pensará o belo como noção de propriedades
transcendentais, quais sejam, unidade,
verdade e bondade, todas retiradas do pensamento grego. Podendo ser pensado
como um transcendental, o belo cristão, nos séculos XII e XIII, revive a kalokagathia grega ou a unidade kalos kai agathos (belo e bom),
possibilitando a harmônica conjunção de beleza física e virtude.
Além da arte gótica (segundo
parágrafo), que permitiu uma ruptura com a arte bizantina, a espiritualidade
franciscana, envolvida com grupos populares, com a realidade material do mundo,
com a contemplação da natureza, com o otimismo da vida e com a beleza dos
elementos, também influenciou para que fosse percebida na arte a presença do
sensível. Não por outro motivo que Giotto expressa o naturalismo da
sensibilidade franciscana, podendo ser apreciado na obra A morte de São Francisco. A
presença do sensível, conforme a Ordem Franciscana, veio à luz em 1245, na forma
de Summa theologica, obra dos frades
Jean de la Rochelle, Frater Considerans e Alexandre de Hales, mas dita Summa fratris Alexandri. Nela, belo refere-se à causa formal,
entendendo como forma o princípio substancial de vida, sendo, portanto, ideia aristotélica.
“Chamo forma a essência de cada coisa e a substância primeira”, afirma o
pensador em sua Metafísica. Assim
sendo, a beleza é a disposição da forma em relação ao exterior. Na Summa, bem e belo fundam-se na forma concreta das coisas. Mas, por prudência
dos franciscanos, o belo ainda não pertence à série dos transcendentais. Somente
após cinco anos, em 1250, São Boaventura escreve em um opúsculo as quatro
condições do ser: uno, que concerne à
causa eficiente; verdadeiro, à
formal; bom, à final; e belo, que abraça todas as causas e é
comum a elas. Sendo o belo uno, verdadeiro e bom, o belo atravessa todos os transcendentais.
Alberto Magno influencia Tomás de Aquino
Mestre de Santo Tomás de Aquino,
Santo Alberto Magno (1193/1206-1280) retoma dos franciscanos “o belo fundado na
forma de uma coisa” por meio de um comentário que, sob o título de De pulchro et bono, figurou por longo
tempo entre os Opuscula de Santo
Tomás. Para Alberto Magno, “a essência universal do belo consiste no esplendor
da forma sobre as partes proporcionais da matéria ou sobre as diversas forças
ou ações”. Com isso, permite-se que o belo passe a pertencer verdadeiramente a
todo ente a título metafísico. Ao dizer forma
e partes proporcionais da matéria, vê-se
uma Idade Média inspirada no hilemorfismo aristotélico, isto é, a forma (morfe) compõe-se com a matéria (hyle) para dar vida à substância
concreta e individual (ECO, pág. 60). Segundo Alberto, há no hilemorfismo
várias tríades de origem sapiencial ou intelectual, quais sejam, modus, species e ordo; numerus, pondus e mensura. Essa
“matemática do belo”, todavia, não considera a referência ao ato humano
conhecedor como constitutivo do belo em sua própria ratio, sendo, portanto, uma estética marcada por um rigoroso
objetivismo. A percepção do outro ainda não existe. Há outro objetivismo: o de
que o belo, embora seja propriedade transcendental do ser, revela-se em uma
relação em que o homem focaliza o objeto, e esse é pensado por ele - Santo
Tomás de Aquino.
Para
chegar à matemática, à lei dos números, Umberto Eco conduz o leitor ao capítulo
3. Depois, amplia essa concepção de estrutura, cuja gênese é Pitágoras. Na
condição de causa, princípio, ninguém pode compreender o belo sem antes
atravessar o caminho reto dos geômetras, qualquer semelhança com Platão em Timeu, obra onde as formas matemáticas
estruturam a Ordem (Cosmo), não é mera coincidência.
A arte sensível de um santo
No
capítulo 7 (parte 7.4), Eco escreve que, ao retomar as noções estéticas
propostas por Alberto Magno, Tomás de Aquino ocupa-se da visão subjetiva do
belo, o que seu professor desconsiderou. Para confirmar essa divisão entre
mestre e discípulo, Umberto Eco retira um exemplo da Suma Teológica I, onde bem e belo amalgamam-se na forma, na
substância, no que sustenta, isto é, na estrutura.
O subjetivo emerge em Tomás porque belas são chamadas as coisas que despertam prazer
quando vistas e, se despertam, é porque nossos sentidos deleitam-se nas coisas
bem proporcionadas. Em Tratados das Enéadas,
Plotino (205 d. C.-270 d.C.) concebe o belo como simetria das partes para haver
a harmonia do conjunto. Tanto proporção
quanto simetria são conceitos que alinham
o belo à matemática, ou matematismo e belo formam um só cálculo. Os sentidos então
são uma espécie de proporção, uma espécie de simetria.
Foi
dito antes que bem e belo fundam-se na forma, sendo que o bem faz com que a
forma seja objeto de apetite porque todo ente deseja o bem; o belo, ao
contrário, coloca a forma em relação com o puro conhecimento, por ser ele, o
belo, aquilo cujo conhecimento causa prazer. Sendo assim, olhar é conhecer, e o
deleite estético não passa de uma consequência desse conhecimento, visto que
esse ato de adesão deleitosa é determinado pelo belo ou pelas formas
matemáticas. A ideia de Tomás traz o subjetivo; ele, porém, é determinado pelo
belo ou por conceitos matemáticos, cujo propósito implica apaziguar os
sentidos, os apetites. Diferente de Tomás de Aquino, o ato de adesão deleitosa
pode ser muito bem um livre ato de efusão concedida à coisa e não determinada por
ela, e quem pensa assim é João Duns Escoto (1265-1308), para quem a visão
estética é uma faculdade livre, pois seus atos sujeitam-se ao império da
vontade. Longe de ser coincidência, essa faculdade livre - subentendam-se as experiências
-, Escoto pertence à ordem franciscana, a mesma ordem de Roger Bacon (1214-1294)
e de Robert Grosseteste (1168-1253). Todos estudaram na Universidade de Oxford
e, entre eles, existe esta linha mestra de conhecimento, qual seja, a experimentação
ou a vontade do sujeito.
Penso
ter ofertado uma ideia do que seja este significativo livro de Umberto Ecos. No
capítulo 8, Santo Tomás e a Estética do
Organismo, o autor detalha mais ainda o que esse pensador conceitua o belo;
porém, como início, apresentei uma linha de raciocínio em que pontos
importantes foram relacionados.