domingo, março 20, 2016

À luz ou à sombra?


A palavra, sabemos, é instável; não é senhora de um só significado, de um só sentido, por isso que ela “é” e “não é”. Por ter a natureza da inconstância. a palavra não pode dizer a verdade, porque, para haver verdade, é preciso existir a constância de A = A.

Para o político, a verdade sempre deve ser dita, pois, como trabalha para o bem dos cidadãos, sua palavra não pode ser ambígua, sua palavra não pode ter duas caras. Mas em que espaço a palavra do político comporta-se como verdade fosse? Pergunto porque a palavra do político precisa de um ambiente que acomode a verdade, que a acolha com segurança. A verdade transmite estabilidade.



Mas que ambiente é esse onde se acomoda a verdade a fim de o político transmitir com segurança a palavra? Ora, esse espaço é o espaço público, mas o entendamos como lugar onde a palavra fica às claras. Diante das câmeras de televisão, perante a multidão sem rosto, o político promete com a face toda exposta à luz do dia ou exposta à luz dos holofotes da TV. Como poderia ser sua palavra mentirosa se o político encontra-se tão exposto? O senso comum acredita que a verdade se manifesta porque, ao estar a palavra às claras, a luz retira da palavra do político toda ambiguidade, ou seja, retira dela toda  inconstância. À luz do dia, a palavra é firme. A verdade, dizem, é luz.

Entretanto, diferente da crença bobinha do senso comum, a verdade jamais poderia se manifestar às claras, porque a verdade não é fácil de ser encontrada, não é valor disponível à luz do dia ou à luz dos holofotes de TV. O que é fácil só é fácil por estar exposto à luz. A verdade, concordemos, não é fácil, como é fácil encontrar objetos à luz do dia. A verdade é difícil na vida, trajetória de uma vida inteira. A verdade, portanto, é busca.

Mas por que buscamos a verdade? É busca porque ela precisa ser encontrada e, para encontrá-la, precisamos saber onde ela está. Ora, se não sabemos onde ela está, e por isso a buscamos, é porque a verdade, que não é fácil encontrar, encontra-se ocultada. Buscamos a verdade para des-cobrir. A verdade não é fácil como são fáceis de ver os objetos à luz do dia. A verdade é segredo à sombra do espaço público, à sombra dos holofotes de TV, à sombra do que o político diz à multidão.

Para o senso comum, a palavra no espaço público é palavra verdadeira, pois ela é dita às claras. Mas é no espaço privado, oculto, à sombra das multidões, onde a palavra não é fácil ser encontrada. À sombra do que é fácil ser encontrado, a verdade é ouvida por poucos, por exemplo, pelo juiz Sérgio Moro. Em latim, “sigilo” significa “marca pequena”, e a “marca pequena” foi quebrada pelo juiz. O que é pequeno, sabemos, não é fácil de ver; porém, uma vez quebrado o sigilo, o que estava oculto, escondido, à sombra da multidão, sai de seu pequeno lugar (conversa pessoal ao telefone) para “assombrar” a luz do dia.

domingo, março 06, 2016

Alétheia

A 24ª fase da Lava Jato é chamada pela Polícia Federal de Operação Alétheia, que na escrita grega é άλήθεια. Os romanos a traduziram como veritas, que se transformou para nós, falantes da língua portuguesa, em verdade. Por causa da tradução,  alétheia perdeu seu sentido original. Isso, entretanto, não exclui a busca de entender um pouco a diferença entre a verdade grega e a verdade latina.


No jornal impresso, no telejornalismo e nas redes sociais, logo se propagou a ideia de que alétheia é “busca da verdade”; porém, se é “busca da verdade”, giramos em círculo ou substituímos seis por meia dúzia, porque o sentido de alétheia se prende ao que nossa cultura entende como verdade. Herdamos dos romanos o entendimento de verdade, entendimento esse que tem como estrutura o direito romano, isto é, a verdade que herdamos do Império Romano vincula-se ao “fato objetivo”, “ao real em si”, “ao que está exposto às claras”. O direito precisa de provas, e as provas são o fato. A verdade do senso comum, que tem como estrutura o mundo jurídico romano, é o fato. Outra compreensão de verdade segundo a língua latina é a qualidade daquele que faz o que diz e que diz o que faz, isto é, a palavra dita só é verdadeira se a palavra se materializa enquanto fato, enquanto realização.


Para os gregos, contudo, verdade não é isso, por isso alétheia, que significa “não esquecimento”. Ora, se alétheia é “não esquecer”, é porque um dia a alma esqueceu e esqueceu porque algo está coberto, velado (lethe). Alétheia é também “des-cobrir, não ocultar”, mas a verdade grega é o momento em que o des-coberto emerge do encoberto. Essa é verdade originária: junção desveladora do encoberto com o seu aparecer, alétheia ou des-cobrimento que irrompe desde o velamento, junção do aparecer com o encoberto. 


Bem diferente da verdade romana, a verdade grega não é o fato, mas a interseção entre o claro e o escuro, quer dizer, para o grego, a verdade não é a luz solar em si e nem a luz lunar em si, mas a junção entre as duas, podendo ser representada pela luz do pôr do sol. Há um belo livro de Guy Van de Beuque que pensa essa questão, Experiência do nada como princípio do mundo.



Até aqui, eu disse que alétheia é a verdade segundo os gregos. Incorreto. O filósofo Gilles Deleuze tem a ideia de “consistência de conceito”, isso significa que o conceito de verdade, por exemplo, depende de cada filósofo. Sendo assim, a verdade pensada por Aristóteles não está na ideia de alétheia. Quem a pensa é Platão na bela obra Fédon.



A Polícia Federal, por meio da Operação Alétheia, trouxe Platão a nós, caindo perfeito para Luís Inácio Lula da Silva e para o PT. E por que perfeito? Porque ambos se esqueceram de suas origens. Mais: eles se esqueceram de que uma das causas de Lula ter sido obrigado a depor na Polícia Federal encontra-se em um dos nomes do próprio partido: Delcídio do Amaral, cuja voz foi gravada pelo filho de Nestor Cerveró em uma reunião onde Delcídio busca comprar o silêncio de Nestor. E quem colocou Delcídio no governo de Dilma Rousseff? Quem ordenou Delcídio comprar Nestor Cerveró? Lula e os militantes do PT se esqueceram, mas Delcídio não se esqueceu. Será que o senador petista leu Platão?







Aldo Bourdieu é professor de Filosofia, de Sociologia, de Literatura, de Religião e de Língua Portuguesa.