segunda-feira, março 12, 2007

Baudrillard


"Brasil é o império das ilusões"
Em entrevista inédita feita durante a Eco 92, filósofo diz que o país não é hiper-real

Flávio Florido - 25.abr.2002/Folha Imagem
O filósofo francês Jean Baudrillard durante palestra na Bienal Internacional do Livro de 2002

KATIA MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

E m 1992, se realizou na cidade do Rio de Janeiro a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco 92. Jean Baudrillard havia sido convidado para uma conferência, e a enorme mobilização da cidade em torno do evento provocou esta entrevista, que aconteceu no Jardim Botânico. Esta não foi a nossa primeira conversa e nem seria a última.
Durante muitos anos foram muitas conversas, mas só tenho o registro desta, que trata da relação entre a natureza e a alteridade, o ciclo da metamorfose, da vida e da morte. As idéias de hiper-realidade e de simulacro são experimentadas no cenário brasileiro a partir de uma análise que considera os processos comunicacionais como aceleradores do consenso. A forma de confrontação escolhida pelo autor é a da teoria fatal, a teoria no meio das coisas, uma teoria que não considera mais a separação entre sujeito e objeto e que acolhe em seu centro os gestos da indiferença como estratégia. Para o Brasil as palavras são de encantamento.
Baudrillard sempre acreditou neste país confuso e generoso e nunca pensou no Brasil como o país do futuro; ele sempre preferiu o presente.

PERGUNTA - Você acredita que esta conferência terá resultados mesmo sendo um tipo de simulacro?
JEAN BAUDRILLARD - Parece-me que tudo isso faz parte de uma nova ordem mundial. No sentido político, a ecologia faz parte de um novo establishment mundial, fundado sobre uma extensão formal da democracia, dos direitos humanos, fundado sobre um consenso. É mais um pacto simbólico com a natureza. Não é exatamente um contrato natural, não é um contrato em termos racionais. [...]

PERGUNTA - Não há mudança de toda forma.
BAUDRILLARD - Neste momento de consenso, só há mudanças mecânicas ou eletrônicas. A rede funciona, o processo é de rede, de circuito. Estabelecemos o consenso pela circulação acelerada das coisas. Se você está dentro de uma rede, você está em consenso. Não é uma questão de ideologia.

PERGUNTA - A aceleração é produzida pela mídia, por exemplo? O que promove toda a aceleração?
BAUDRILLARD - Na verdade, parece uma espécie de imensa maquinaria em forma de circularidade indefinida. Tudo comunica e tudo se torna comunicação. Nada muda verdadeiramente, não há uma forma de alteridade, de antagonismo, de relação dual. Não. Tudo circula. Tudo se torna comunicação, seja a sexualidade, as imagens ou até mesmo os processos científicos. Temos a impressão de que somos reconhecidos no mercado da pesquisa científica por descobertas e hipóteses que possam comunicar. O universo da comunicação é monofuncional. Existe uma mobilidade e é preciso que tudo seja dito. É preciso que tudo circule. De onde vem esse imperativo? Eu não sei... um mecanismo de dissuasão, de desqualificação. Tudo que é substancial, que tem valor, é perigoso. Então é preciso reduzi-lo, é preciso consensualizar fazendo circular.

PERGUNTA - Você vê a questão da hiper-realidade no Brasil?
BAUDRILLARD - Eu não vejo o Brasil como um país hiper-real. Não é como a Califórnia, a América do Norte. Talvez porque o Brasil ainda não tenha passado pelo princípio de realidade, não pode se tornar hiper-real, porque o hiper-real é mais que o real, um tipo de confusão entre o real e o imaginário. Tem-se a impressão de que não existe um princípio de definição da realidade. É bem uma espécie de país de ficção, mas não de ficção de transparência. Não é o país da semiologia ou da semiótica. Tenho a impressão de que o Brasil está mais próximo do jogo da ilusão, da sedução, dessa relação dual, mas confusa, e que não há essa forma de abstração que é a hiper-realidade... Enfim, essa forma de transmutação no vazio, de perda de substância, de referência. Aqui, é claro, há televisão por todo lado, há imagens, isso tudo. Temos a impressão de que é uma matéria muito mais bruta, imediata, primitiva, é uma matéria da relação coletiva. Não é a mesma definição que podemos ter na Europa entre o meio e a mensagem. Toda a teoria da comunicação não funciona assim porque são as funções de um modelo abstrato, uma realidade abstrata. Justamente por meio das novas imagens há uma espécie de confusão entre o emissor e o receptor. A hiper-realidade é uma espécie de roteiro transparente da modernidade, mesmo na Europa. Aqui eu tenho a impressão de que é uma confusão não primitiva -porque seria uma expressão pejorativa-, mas original. Uma confusão que é ainda uma forma anterior à da discriminação das coisas, da distinção das coisas. A hiper-realidade é quase tardia porque veio depois da divisão das coisas.

PERGUNTA - Mas nos EUA também não houve uma realidade anterior.
BAUDRILLARD - Sim, certamente. Não exatamente um princípio de realidade, na medida em que não houve uma acumulação primitiva de realidade por dois séculos, como na Europa. Não há um histórico de realidade, mas um princípio tecnológico, operacional, pragmático. Isso é um problema de infra-estrutura própria, não é uma infra-estrutura de princípios metafísicos, de princípios do sujeito. Há um princípio de operacionalidade muito forte nos EUA . Aqui eu não tenho a impressão de que ele funcione realmente, e não é ele que governa as formas simbólicas da relação. Portanto, é uma situação original, mas, evidentemente, quando fazemos a análise da hiper-realidade, ela é universal. Todo mundo é submetido a esse regime de potencialização de signos. Mas talvez o Brasil escape do universal. É preciso saber se a cultura brasileira passou pela modernidade, se os elementos de modernização, de abstração, de mediatização se tornaram os mais fortes. Se foi engolida e absolvida por isso, não estou muito certo. Não há julgamento estatístico ou metafísico. Talvez no Brasil haja uma certa tradição, talvez haja muito mais de surrealismo que de hiper-realismo.

PERGUNTA - Então seriam principalmente efeitos do inconsciente ?
BAUDRILLARD - O hiper-realismo é, na verdade, uma zona da desencarnação dos corpos. Não é o caso, aqui os corpos não são de forma alguma desencarnados. Os gestos, o movimento aqui são verdadeiramente sensuais. A hiper-realidade é um tipo de desencarnação, de desilusão, um pragmatismo das coisas. Aqui ainda é o império das ilusões, mas no sentido positivo do termo, ou seja, o jogo de aparências, incluídos no gestual, na dança, na música, no jogo, no culto. Esse tipo de coisa não demonstra absolutamente uma alternativa política, apenas mostra que ainda existe uma forma de ilusão, isto é, de gestão simbólica das coisas.


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KATIA MACIEL é professora de comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.