quarta-feira, maio 22, 2013

Uma resenha a teus olhos



Gilles Lipovetsky não lecionou na Escola de Frankfurt
 
                                              Aldo Antônio Tavares do Nascimento


LIPOVETSKY, Gilles.  Metamorfoses da Cultura Liberal: ética, mídia e empresa. In: Deve-se culpar a mídia? Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 67-75.
           
            Nascido em Millau, ao sul da França, em 24 de setembro de 1944, Gilles Lipovetsky leciona na Universidade de Grenoble, ao sopé dos Alpes. Seu primeiro livro, A Era do Vazio (França, 1987), “viajou” 18 anos para cruzar o Atlântico e desembarcar, em terras brasileiras, suas traduzidas palavras. Cinco anos depois (1992), edita em seu país A Sociedade Pós-Moralista, que aportou no Brasil após 13 anos, em 2005. Citamos esses dois títulos por se relacionarem ao livreto Metamorfoses da Cultura Liberal: ética, mídia e empresa, lançado no Canadá (2002) e no Brasil (2004), sendo a parte IV (Deve-se culpar a mídia?) motivadora desta resenha.

            Em A Era do Vazio, o leitor depara-se com um individualismo jogado à “deserção social”, cuja característica é o vaguear apático, atribuído à atomização das relações sociais. Lipovetsky refere-se a esse livro na parte I de Metamorfoses. A Sociedade Pós-Moralista encontra-se na parte II, em “As três eras da moral”.

            Sem trilhar o caminho do rebuscamento sintático para refletir sobre “o tempo presente,/ os homens presentes,/ a vida presente.”, como poetiza Carlos Drummond de Andrade em Mãos Dadas, do livro Sentimento do Mundo, o filósofo Gilles Lipovetsky é simples e, quando elabora conceitos em suas sintaxes, surpreende. Em Deve-se culpar a mídia?, não poderia ser diferente ao declarar que a sociedade liberal trouxe benefícios aos indivíduos. Quais? Surpreende quando afirma que a cultura de massa não aliena e não manipula, mas liberta o indivíduo. De quê?

            
Assim, na última parte do livro, o autor diz que a Escola de Frankfurt difamou as indústrias culturais porque ela disseminou o isolamento do indivíduo; destruiu as identidades regionais; uniformizou o pensamento e os gostos; desagregou o espaço público; atomizou o social. A violência se expande. A imoralidade se avoluma. Culpa-se a indústria cultural. Entre as três perguntas de Lipovetsky na página 68, esta: “Em que medida a mídia chegou a degradar o espaço público democrático?”.

            Para encontrar respostas, o autor visita rapidamente as décadas de 1920, de 1950 e de 1960 para chegar à tese da massificação e, com isso, negar esse mesmo processo de massificação quando ele atesta que a mídia não massifica mais do que a escola. Segundo ele, “a mídia funcionou como agente de dissolução da força das tradições e das barreiras de classe, das morais rigoristas e das grandes ideologias políticas”. A mídia, portanto, emancipou os indivíduos em relação às autoridades institucionalizadas e às coerções identitárias da família, do partido, da igreja. Foi a partir dos anos de 1960 que as instituições coletivas perderam uma considerável parte do seu poder regulador, iniciando assim a desinstitucionalização do indivíduo, ou seja, com o individualismo desregulado, dessincronizado, os lugares tradicionais cedem ao universo privatizado do consumo dos objetos, das imagens e dos sons.

            Quando temos a certeza de que sua reflexão, finalmente, estabiliza-se, Gilles Lipovetsky, com simplicidade, surpreende por asseverar que a difusão social convive com diversos fanatismos, formando a imagem de uma sociedade contraditória. Não há em seu pensamento uma sociedade padronizada como existe em O Fetichismo na Música e em Lírica e Sociedade, de Theodor W. Adorno - um dos grandes nomes da Escola de Frankfurt -, mas tão somente o trânsito livre dos paradoxos. Entendamos que uma parte dessa contradição, a multiplicação de seitas, não significa resíduos do passado, mas “a própria dinâmica do neoindividualismo e do enfraquecimento das grandes instituições de enquadramento”.

            Embora leiamos em seu texto que a mídia tenha possibilitado ao indivíduo comparar informações por causa de múltiplas referências, Lipovetsky exemplificará depois que essa mesma mídia está longe de democratizar a cultura: um francês em cada quatro não leu um único livro nos últimos 12 meses. Isso não é culpa da mídia. Trata-se de uma máquina social, ajustada pelo consumismo, pelo individualismo e pelo utilitarismo, que determina para essa direção. A mídia tem seus limites.

            Como escrevemos antes, o autor de A Era do Vazio e de A Sociedade Pós-Moralista questiona a Escola de Frankfurt nas páginas iniciais de Deve-se culpar a mídia?. Isso nos faz imaginar que Lipovetsky poderia ter interpelado Adorno quando este escreveu na lousa dessa escola que “a indústria cultural impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. No entanto, quando Adorno e Horkheimer empregaram os termos “indústria cultural” pela primeira vez em 1947 na revista Dialética do Iluminismo, Gilles Lipovetsky tinha apenas três anos de idade. Assim, embora não tenha lido o que Adorno escreveu no quadro da Escola de Frankfurt, o autor de Metamorfoses da Cultura Liberal deixa uma “lição” para aqueles que ainda pensam como Theodor Adorno, qual seja: que a indústria cultural não tem todos os poderes.


Beijar



Em sua insana consciência, o Amante jamais pensa como beijará o ser Amado, porque o que é vital no beijo é o não pensar.


Uma vez nele, uma vez entre os lábios e a língua, entre a saliva e o céu da boca, já não vemos mais nada. Fechar os olhos.


Desejamos tão somente sentir o movimento incerto da carne para partir... e, fechados os olhos, a Alma se sente cair no abismo de uma breve viagem. Deixar ir.

Nada no beijo é exato, preciso ou calculado. Quanto mais errado, quanto mais a língua escapa, foge, escorre, quanto mais os lábios se jogam, a boca só deseja se perder, mais ainda, na boca Amada.

Mas quem disse que o beijo são só os movimentos da carne? Antes de eu ter minha boca de volta, antes de eu ir embora, pouco antes de minha partida, deixei na tua não só o pecado molhado da saliva, mas meu sopro...

meu sopro de vida.