domingo, janeiro 13, 2019

Menino, azul. Menina, rosa. Meu menino, menina


Quando nosso filho nasceu, sua vida nos chamou ao mais sensível.  Com o passar do tempo, deixamos João ser criança, brincar. Enquanto minha esposa assistia aos cultos, e porque pastores em igrejas não brincam de esconde-esconde, João, que só acredita num Deus que saiba brincar, se alegrava comigo no pátio da Casa de Deus e não condenava nada. Brincar inocenta erros. Brincar é uma forma expressiva de erro que nos alegra.

Certo dia, com a inocência de seus quatro anos, João me surpreendeu: “Papai, vamu bincá di buneca?”. Meu filho sempre usou azul, sempre. Azul era seu quarto. O uniforme escolar, azul. Sua pasta, azul. Azul também a maioria dos brinquedos. Nossa casa, azul. Meu menino era cercado de azul. Evidente que não tinha o “pintinho” azul, mas sua identidade estava lá. Sua natureza tinha determinado um “pinto”. Meu filho nasceu homem e vestia azul.

Após cinco anos entre brincar com carrinhos e bonecas, fui percebendo que o azul se desbotava, até que, aos nove anos de idade, ele disse a mim e à mãe que sempre se sentiu menina. Influência da escola marxista? Alguma professora com ideologia de gênero? João estava doente? Terá sido alguma praga do pastor por ele ter brincado no pátio da igreja? Meu filho é contra Deus.

Quando a ministra das Mulheres, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que “menino veste azul e menina veste rosa”, as cores são referências simbólico-culturais para que órgãos sexuais sejam identificados. Identificar o sexo pela cor é fixar, é saber quem é. O recém-nascido só é reconhecido como menino ou como menina pela única razão de cada identidade ser definida por sua natureza: seu órgão genital, portanto, a sua identidade.

Pelo ultrassom, a mãe sabe com muita antecedência se é menino ou menina. Para revelar à família o sexo do bebê, promove-se o “chá revelação”. Sobre a mesa, um bolo. A expectativa, cortá-lo: se por dentro o bolo é azul, menino; se rosa, menina. Até hoje, nenhum corte revelou um bebê neutro. A identidade sexual vinculou-se, ao longo de séculos, à aparência do corpo.

Mas o que é identidade? Quando o policial pede minha carteira de identidade, ele quer a prova de que eu sou eu mesmo, que sou igual a mim mesmo. Uma vez identificado, tudo permanece normal, estável: eu sou eu, pois meu rosto é o mesmo da foto. Mas a aparência, sabemos, é instável, efêmera, visto que não será a mesma daqui a 40 anos, quando haverá a necessidade de uma foto atualizada. Se a aparência não fixa minha identidade no tempo, então não posso confiar nela para afirmar quem sou. “Aparência” significa “chegar perto”, não diz o que a pessoa humana é. Evidente que a identidade-aparência organiza a vida; facilita a relação entre mim e o guarda de trânsito, mas ela é a minha essência.

Entendo a ministra. Para ela, “o pintinho” é identidade, não devendo a “ideologia de gênero” - conceito, por sinal, errado - causar confusão em uma personalidade ainda não formada. Essa relação com o mundo externo, o psicanalista Bruno Bettelheim o deixou escrito no clássico A psicanálise dos contos de fadas, onde Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, fixam não o que é menino e o que é menina, mas comportamentos adequados ou ajustados à natureza de cada um, o que significa dizer que as páginas de Charles Perrault, porque imitam o modelo, são representações estáveis para a criança. Porquanto escreveu olhando para o modelo ou para o limite, Perrault é o Platão da literatura infantil. Bettelheim é platônico: o menino veste azul e a menina veste rosa, pois isso indica marcas simbólico-culturais com a finalidade de dar à criança isto: a não confusão, segurança. “Mais importante ainda, para se sentir segura na terra, a criança necessita acreditar que este mundo é sustentado firmemente”, e continua o psicanalista. “A criança, não tendo seu id sob controle consciente, necessita de estórias que permitem pelos menos uma satisfação fantasiosa destas ‘más’ tendências, e modelos específicos para sua sublimação”.

Mas e o João, meu filho, que veste rosa? A ministra Damares, merecedora de todo respeito, assim como toda comunidade LGBT, sabe que a palavra “natureza” origina-se do grego physis, que significa “movimento”; e, por ser movimento, a natureza do meu filho escapa ao modelo. O modelo pode fixar menino com azul, mas é só olhar a natureza e perceber que Deus mistura cores, por exemplo, em meu filho. João, que não se reduz à aparência da cor, é alma - “o essencial é invisível aos olhos”, diz o Pequeno Príncipe, que veste azul, também.