O Reino desencantado de Momo
Quando Momo receber as chaves do prefeito, mais uma
vez ele abrirá as portas da cidade para o Carnaval, e uma multidão sem rosto
irá se aglomerar em frente à prefeitura para ouvir a Banda Sam Brasil. Aquilo
que o poder público habituou-se a chamar de festa popular, vai para as ruas ao
som da cultura de massa.
Comercializada e descaracterizada pelo lucro do
comércio e pela ignorância do poder público, Momo dança ao som do pagode mais
brega, canta a letra mais vulgar do Tchan, se diverte numa festa que não é mais
dele; seu Reino, o da Carnavalização, sem mais nenhum sentido histórico e
alegórico, massificou-se; perdeu qualquer referência com o passado.
“O Carnaval para mim é um momento que eu me divirto
por divertir, é uma festa que eu quero esquecer os problemas, beber muito,
muito mesmo”, conta Ricardo, um folião rio-branquense. “No carnaval, quero beber
até cair e comer muita mulher, porque no Carnaval dá muita mulher”.
Como muitos, Ricardo é só mais um que irá “brincar”,
de maneira inconsciente, mais uma vez no Carnaval. Representante maior de um
reino desfigurado, Momo governa por três dias um mundo deserdado de qualquer
significação histórica.
MOMO, O REI DA CARNAVALIZAÇÃO
Opondo-se ao discurso oficial, ou seja, à linguagem
que regula as desigualdades sociais, o Carnaval promove a ascensão do avesso,
porque faz emergir a força subversiva do mundo inferior (o Inferno), do mundo
baixo, que, ao receber as chaves do prefeito por meio do Rei Momo, estimula a
circulação do Riso, da Brincadeira, da Paródia, do Escárnio, da Ironia, da
Máscara, do Louco, da Festa – palavras que foram excluídas pela disciplina do
trabalho (o dia, a luz) e das instituições (razão reguladora).
Se o trabalho arranca o suor do rosto, se é
sacrifício e exploração; se a lei não pune os ricos, a Festa de Momo rebaixa
quem domina e explora, visto que, por ser Festa, ri, provoca pilhéria, escárnio; faz uso da
máscara, da fantasia para desvelar as
aparências da classe dominante.
Profundo conhecedor da função política do Carnaval,
o marxista russo Mikhail Bakhtin dá um sentido original à Festa de Momo,
negando a ela qualquer aproximação com o vulgar ou a massificação.
“O motivo da máscara
é mais importante ainda. É o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da
cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das
reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do
sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo”, diz Bakhtin.
Nesse sentido, o mundo social, regulado pela classe
dominante, não coincide com ele mesmo no Carnaval: é metáfora – fantasia que
inverte, distorce, altera, re-apresenta, mostra, revela a face oculta do
opressor.
Outro estudioso dessa Festa Profana, o antropólogo
Roberto DaMatta explica. “Na fantasia
carnavalesca, que revela muito mais do que oculta, já que uma fantasia,
representando um desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os
papéis que representa e os que gostaria de desempenhar”.
Assim, conduzindo o Reino da Carnavalização, o Rei
Momo, na condição de um aristocrata (aristo
= os melhores e crata = poder),
recebe a chave e convoca todo o poder político do Carnaval para reinterpretar a
ordem social regida por uma classe social que domina e explora. Se essa mesma ordem
discrimina e cria as desigualdades entre classes, Momo provoca o Riso a fim de
nivelar a opressão à condição do comum e do vulgar. A Festa de Momo, portanto,
destrona a classe dominante.
“O riso foi enviado à Terra pelo diabo, apareceu aos
homens com a máscara da alegria e
eles o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a máscara
alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da
sátira”, finaliza Bakhtin. “O Carnaval (repetimos, na sua acepção mais ampla)
liberava a consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um
olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de piedade,
perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e não niilista, pois
descobria o princípio material e generoso do mundo, o devir, e a mudança, a
força invencível e o triunfo eterno do novo, a imortalidade do povo”.
A METÁFORA DE MOMO
Filho do Sono e da Noite, Momo, oposto à exploração
do trabalho, deseja o ócio, assim como os sacerdócios, só que o ócio de Momo não é sagrado: é profano, isto é,
seu ócio (palavra que vem do grego
“sxolé”, donde deriva escola, lugar onde se adquire saber) promove a corrosão
do Riso, da Máscara, da Festa, da Paródia – palavras cujas funções invertem a
“normalidade” do mundo.
Gordo, digo, excessivamente gordo, no Reino de Momo,
o da Festa, prevalece o Exagero, o Excesso, a Abundância, a Fartura, para que
todos possam, alegres, se deliciar. No Reino de Momo, Riso, Paródia, Fantasia,
Brincadeira negam nos três dias as diferenças entre ricos e pobres para que
seja devolvido aos mortais uma Louca confraternização.
O folião ( folie em francês) significa loucura.
Ora, o que faz o louco senão colocar do avesso a normalidade do mundo. Uma vez
sem a censura da razão cínica, a mesma razão que nos guia à luz do sol, o folie, à noite, regido pela lua, faz vir
à tona valores, falas e comportamentos censurados pela “normalidade” do dia. Em
seu Reino, Momo, gordo, significa o
excedente roubado pelo trabalho e pela lei.
“A loucura tem uma força maior do que a razão,
porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se
obtém com uma chacota”, nos ensina Erasmo de Rotterdam. “Que é, afinal, a vida
humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual
representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos
comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras,
e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge, em seguida,
disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade,
tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência”.
Pois bem, o Carnaval, des-cobrindo as aparências, destrona o rico, a lei que não o pune;
rebaixa quem oprime e rouba com a maior desfaçatez. Nesse sentido, a Festa de
Momo é popular.
A PERDA DE SENTIDO
Esse Carnaval, entretanto, que teimam em chamar de
popular, não existe em Rio Branco. Momo, aqui, está morto, ou melhor, ressurgiu
das cinzas a serviço da cultura de massa, cuja função é deformar tudo em
mercadoria vulgar. Nessa indústria cultural, cultura de consumo, Momo não passa
de objeto, carcaça sem sentido histórico e alegórico. Coisificado pela cultura
de massa, Momo reina, pois, num reino desencantado – “No Carnaval, quero beber
até cair e comer muita mulher, porque no Carnaval dá muita mulher”.
Nesse detrito cultural do entretenimento, a
banalidade deposita no espaço público ruínas simbólicas; espalha a chaga da
alienação; faz da rua um depósito para entulhar indigentes culturais. Sem
identidade, no reino desencantado de Momo (e no Acre não se usa fantasia,
máscara - não há metáfora), mediante este processo, ninguém se reconhece em seu reino.
“A cultura de massa preenche os vazios do silêncio
que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela
docilidade de escravos sem exigências”, conclui Theodor W. Adorno
Bibliografia
A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento,
de Mikhail Bakhtin, editora Hucitec
Carnavais, Malandros e Heróis, de Roberto DaMatta,
editora Guanabara
O Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, editora
Abril
O Fetichismo na Música, de Theodor W. Adorno, editora
abril
O Riso, de Henri Bergson, editora Guanabara