segunda-feira, maio 25, 2009

Que o Ventoforte volte um dia...

No dia 23 de maio, sábado, às 20h30, uma caravela aportou na escola estadual Heloísa Mourão Marques para que alunos embarcassem. Partimos às 20h35. Após uns minutos, o casco atracou-se em porto inseguro, mas um Ventoforte, vindo do norte, estufou as velas para lançar os navegantes em mares inquietos da imaginação.

Nossas pupilas, entregues às sombras do teatro, dilataram-se para degustar o texto apaixonante de Ariano Suassuna e de Ilo Krugli.
Ventoforte varreu os entulhos da realidade para, em seu lugar, o da realidade, colocar o surpreendente, o inesperado; para colocar lacunas, vazios que deverão ser preenchidos por nossa interpretação.

Apaixonei-me pelo grupo. Quem dera que o teatro tomasse de assalto espaços urbanos, espaços públicos, ruas de Rio Branco. Quem dera que houvesse menos igreja e mais arte teatral.


A nova política

Crise econômica abre espaço para questionar
legitimidade das instituições políticas

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Para entender a crise atual do sistema capitalista de produção convém insistir no seu caráter automático. A crise se aninha na natureza da ação socioeconômica que repõe o capital.

Os agentes operam no mercado imaginando que suas ações sempre serão contrabalançadas por ações alheias, atuam graças à mediação do dinheiro que, por si mesmo, aparece como se tivesse a virtude de transformar mercadoria em preço e preço em comprador.

Dada essa equação, a economia cresceria indefinidamente.

A crise revela a perversidade desse processo e recoloca a questão do Estado nesse movimento de reposição.Mas qual Estado?Se deixarmos de lado esse automatismo, simplesmente iremos procurar agentes responsáveis pela crise, como se todos eles não tivessem culpa no cartório.

O desafio não é encontrar novos mecanismos de mercado, mais sadios e consistentes, mas instituir órgãos reguladores do funcionamento dos vários mercados capazes de legitimar seu funcionamento, isto é, assegurar que funcionem em vista do bem-estar e do bem-ser da população.

Ilusão em xeque
A crise revela o caráter social do capital e indica como ele precisa ser reestruturado de um ponto de vista político.

Mas política radical. Em que sentido? Está posta em xeque a ilusão de que a luta política deva recorrer a um fundamento comum consensual, como se o ser humano fosse naturalmente social e atuasse a partir dessa sociabilidade primeira.Basta um olhar crítico sobre a política internacional contemporânea para que se perceba que os conflitos, por serem tão radicais, podem ser identificados com um confronto de civilizações.

Não é assim que vejo, pois as populações querem participar de uma forma de vida pós-industrial.Assim sendo, o consenso, a legitimidade das decisões, passa a ser construído e resulta do esforço de cada parte em vista de manter a si mesma segundo o que pretende ser, mas reconhecendo a possibilidade de persuadir e de ser persuadida.

Hoje a legitimidade se faz construindo instituições legitimadoras. Neste início de maio se realizou em Grenoble [França] um fórum reunindo mais de cem pesquisadores para discutir a democracia em nível mundial. Foi organizado por Pierre Rosanvallon, que acaba de publicar "La Légitimité Démocratique" [A Legitimidade Democrática], um excelente livro, e conta com a participação importante de Claude Lefort.

Todos sublinhando que a democracia é sistema aberto, sempre se reinventando, mas que, nos dias de hoje, somente se torna legítima na medida em que se associa a instituições capazes de se tornarem imparciais diante de conflitos, refletir sobre seus efeitos e não perder contato com as várias populações interessadas. É preciso ir além do bom funcionamento dos procedimentos eleitorais, reconhecer o caráter global das políticas econômicas e a necessidade de políticas sociais compensatórias.

Crise evidente
Note-se que não são apenas os franceses que estão colocando essas questões -elas se impõem na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA. Enquanto eles discutem os desafios de uma democracia pós-eleitoral, assistimos à perda de legitimidade de nosso processo eleitoral, enfim, do sistema de representação.

Nosso Estado cresce sem que seja nem mesmo posta a questão do caráter democrático de suas decisões. A crise no Legislativo é mais evidente. Quando seus membros se confessam imorais, quando arrombam os cofres públicos, quando propõem novas regulamentações que não passam de máscaras para manter antigos privilégios, estão simplesmente evidenciando e velando a crise sistêmica no processo de representação e de legitimação.

Não é de hoje que saliento a necessidade de pensar a moralidade pública no contexto de inventar novos parâmetros, por conseguinte, de quebrar até mesmo antigas regras morais para que novas se estabeleçam. Nunca imaginei, entretanto, que políticos viessem confessar sem pejo que pouco lhes importa o lado moral de suas ações, visto que, mesmo se mostrando sem caráter, continuam a receber o voto popular.

Há melhor prova da ilegitimidade do sistema? Nessa mistura entre o público e o privado, não é o caráter democrático da instituição que está sendo posto em xeque? O popular nem sempre é democrático, isso já sabemos por experiência própria. Se não há preocupação com a democracia interna, menos ainda se pensa nas dificuldades de estabelecer um sistema democrático controlando os mercados.

Já que nos contentaremos com um Estado grande (ou inchado?), importa-nos apenas o controle externo que permita nosso crescimento. Por aqui o importante é fazer de conta que se é eficaz, seja lá em qual domínio. Onde estão, porém, as transformações das burocracias do Estado que tragam para o mundo essa ideologia da eficácia? Diante das pressões da mídia e da insatisfação popular, o Legislativo requenta propostas de reforma política.

Mas não vejo em nenhuma delas uma preocupação de aprofundar a democracia, de melhorar o sistema representativo a partir dos obstáculos e dos erros do jogo de poder atual. Lista fechada Em tese, a proposta de eleições em lista fechada reforça o sistema partidário.

Mas hoje não equivale a reforçar a corrupta burocracia partidária? Em contrapartida, o simples voto nominal não liquidaria uma possível estruturação dos partidos? Não há espaço para discutir a fundo todas as propostas, mas creio que uma análise superficial mostra que, ao invés de visar o aprofundamento do sistema democrático, tratam sobretudo de mudar no detalhe e no imaginário para que o essencial não seja mudado.

O processo de representação nasce nos municípios. A Constituição de 1988 fez a loucura de transformá-los em órgãos federativos; depois de criados, se mantêm, mesmo quando são organicamente deficitários e inadimplentes. Grande maioria deles está nessa situação. Precisam, então, para subsistir, de ajudas externas, estaduais, principalmente federais. É o primeiro passo do toma lá dá cá. Formam assim a matéria-prima da corrupção política do país. Não é à toa que não se fale disso.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP
e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Escreve na seção "Autores", do Mais!.

Ventoforte que varre tolos, superficiais

Encontrei este texto na revista virtual Bacantes.

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Se o mundo fosse bom, o dono morava nele
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por Juliene Codognotto

Uma visitinha pro Ariano

Música, máscaras, bonecos, gente. Na peça Se o mundo fosse bom o dono morava nele, o Ventoforte pega emprestada uma história de Ariano Suassuna pra brincar de teatro com ela (desnecessário). E brinca mesmo.

Tudo que se vê no palco durante duas horas e meia de peça é uma grande brincadeira usical que tem a cara do grupo e, o mais importante, a cara dos “dias de hoje”. Ao adaptar A pena e a Lei, obra original de Suassuna, Ilo Krugli incluiu - além da música, das máscaras, dos bonecos, e do contato próximo com gente alegre já citados - um prólogo e um epílogo, que aproximam a narrativa nordestina de 1959 de questões que estão hoje em todo lugar.

Há personagens divertidíssimos nas três partes dessa história, e quem reina no universo de Suassuna é Benedito, um negro esperto que se dá bem usando sua inteligência. Não, não é João Grilo, não, é Benedito mesmo.

No entanto, apesar de o rapaz chamar a atenção com sua malandragem (e o intérprete com sua voz e expressão corporal), o Ventoforte está falando mesmo é do dono do “Mamulengo”, o Cheiroso, que administra - por assim dizer - um teatro de bonecos.

Não vou contar aqui as histórias de Suassuna, pois elas são divertidas justamente pelas surpresas que causam com as quebras de repetições - que lembram gags de palhaço. Vou contar uma história de prólogo e epílogo. Um história de visão crítica do mundo por meio da fantasia, que tem início com um cutucãozinho na TV.

Quando a peça começa, está sendo gravada uma minissérie da Rede Globo - O Auto da Compadecida, que também virou filme, lembra? - no fim da rua. Então, Cheiroso explica que na TV não tem ação, eles até gritam “ação!”, mas quando o sujeito age mesmo, mandam cortar.

Daí pra falar da questão financeira é um pulo, afinal, a estrutura e os aparatos técnicos que a Globo tem pra brincar com Suassuna nem se comparam aos do Ventoforte, que já chegou a interromper peça por conta da chuva.

Mas não é preciso detalhar as diferenças, há outros recursos cênicos pra evidenciar isso de forma simples: apagam-se as luzes. “Será que não pagamos a Eletropaulo?”, se pergunta o próprio Ilo Krugli, ainda na batina do padre Antônio, personagem do segundo episódio, mas agora no papel dele mesmo.

E então, sob luzes de emergência, o público é levado para um outro ambiente onde serão aproveitados os refletores que a Globo esqueceu no fim da rua pra suprir a falta de luz do Mamulengo.

No teceiro e último episódio, os personagens de Suassuna fazem o julgamento de Deus (ou de Jesus, ou do Espírito Santo, não tenho muita certeza. Fiz catecismo, mas sempre confundo os três), por sugestão de Benedito, e acabam julgando a vida e a continuidade dela. Eis que entra Ilo Krugli, para um epílogo.

“Essa cena é improvisada mesmo. Pode falar, pode perguntar”, ele diz. Ao fundo, os personagens de Ariano, expostos. À frente, Ilo, prometendo contar-nos o destino deles e revelando que a maior parte migrou pro sudeste e pro sul.

A participação de Ilo é tema à parte, já que, como disse o Fabrício, ele é a própria quebra da quarta parede. Está lá, presente, vivo, ao mesmo tempo que parece um bonequinho de corda. Aquele é o espaço do jogo, da diversão e não há textos ou “escrituras” que o impeçam de improvisar e confundir, de revirar as cenas e fazer com que os próprios atores parem para rir dele.

Há que se dizer que o jogo cênico fica meio embaralhado e as cenas parecem, muitas vezes, uma grande bagunça impossível de entender. Fora da lógica, fora da “arrumação” com que estamos acostumados. Mas tudo isso faz parte da brincadeira e, sobretudo, de uma postura profissional de não se levar a sério. Já na história, a vida continua, o Mamulengo continua, os bonecos se reproduzem… pra quê? Bem, aí já é sério e abstrato demais pra explicar.