quarta-feira, setembro 12, 2007

Matéria de Josafá Batista

Esta matéria não foi publicada nos jornais acreanos por questões óbvias. Os blogs cumprem a função de expor o que a imprensa oculta. Os blogs são desobedientes, alguns.
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Mais de mil acreanos perdem
o direito à moradia no Bahia Velha

A lei: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança... a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

A prática: a Justiça, com o apoio da Segurança Pública, ordena a retirada de 1.060 famílias de uma área improdutiva do bairro Bahia Velha. Famílias pobres. Desamparadas.

Foi na quinta-feira passada. A Tropa de Choque da Polícia Militar, imponente, ostentava cacetetes e escudos novos. Imposto bem aplicado, pena que ali não houvesse bandidos. Impasse irrelevante. Rápidos, oficiais de Justiça exibiram a ordem (mandado de reintegração de posse) bem clara para qualquer entendedor. No papel, a sentença: a terra tinha dono.

E o dono mandou expulsar os invasores o mais rápido possível. E a polícia, consciente de seu papel policiador, cumpriu o dever. E na última quinta-feira, primeiro dia do feriadão prolongado para a imprensa, véspera do Dia da Pátria, cacetetes e escudos habilmente manejados puseram-se em ação.

E o cipó de aroeira voltou no lombo de quem mandou dar. Termina o feriado. Ontem, na área ainda ocupada pelos sem-teto, o pai não capinava a terra para plantar ou criar galinhas. A mãe não cozinhava macaxeira e feijão. As famílias uniram forças para reconstruir barracos desmontados no ardor do zelo policial.

Ao ver o repórter, a filha, cinco anos, abandona o naco de pão. Agarra-se à saia da mãe, chorosa, e grita:

- Mãe, olha o homem!

A mulher vira o rosto, que se fecha. Os braços descem. E arrebatam a filha do chão.

- Não é da polícia! - grita o repórter, ainda longe, meio surdo com o martelar da madeira. Gesticula com os braços e repete a frase, enquanto lembra o que havia lido, na sexta-feira, no blog de outro repórter, o Altino Machado (que trabalhara no feriado).

- Onde estará a Deusa Bárbara?

A má impressão se desfaz. Gente começa a se reunir, muita gente. Enxada ao ombro, chapéu de palha, camisa de campanha eleitoral, eles contam a mesma história com personagens diferentes. A mesma história, a mesma essência: desrespeito ao direito de quem nunca teve direito algum.

Medo, o amigo

As famílias podem receber a visita da polícia a qualquer momento. E temem isso. No acampamento do Bahia Velha, a noite não é só uma noite. Em cada acampado acampa-se também o medo.

“Dormimos rezando para que não nos retirem a terra, que antes da gente era improdutiva e não tinha uso algum. De repente, devido a uma questão de herança muito mal explicada, podemos perder tudo e ainda de forma humilhante. Não é pra ter medo?”, pergunta Deusa Oliveira - é ela! - , uma das líderes da comunidade.

Deusa Bárbara, como apelidara Altino, vai dormir hoje com um esquema de vigilância revezada. Aliás, vai participar dele. Medo e coragem na madrugada.

O medo não existia antes da intervenção policial. Só coragem para trabalhar. Um dos motivos é que, antes da ocupação, as famílias procuraram informações sobre a área. Descobriram que, além de ser realmente improdutiva, não havia impedimentos legais à ocupação.

A Justiça discordou. Veementemente. Pela sentença judicial, a área pertence a herdeiros de um terceiro e deve ser devolvida a eles. Saliva a boca do leviatã.

Ordem e progresso

Um grupo de instituições, como o Ministério Público Estadual (MPE), a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos e o Instituto de Terras do Acre (Iteracre) busca encontrar o elo perdido. A preocupação procede. Como pode haver democracia onde cidadãos não têm direito à moradia, direito constitucional?

“O MPE propôs uma ação de suspensão da liminar de reintegração de posse para defender os interesses das famílias que moram na área há mais tempo. No entanto, isso vai depender de um levantamento prévio, pois soubemos que alguns moram há mais de 10 anos.

A nossa preocupação é garantir o direito de posse dessas famílias”, explica o atormentado secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Henrique Corinto de Moura.

O secretário explica que o governo é contra a ocupação de terras porque a mesma Constituição garante o direito à propriedade privada. Mas há questões paralelas, como o direito à posse e o direito ao usucapião das famílias que ocuparam antes - nesses casos as ocupações tornam-se legais, mas só porque a lei quer.

“Quanto às demais famílias não beneficiadas pelo tempo de posse e em situação de risco social vamos propor uma medida de gestão. Mas isso também vai depender da análise da situação de cada família para ver se elas se enquadram em algum programa de assistência. Daí podemos descobrir qual o perfil delas e como o Estado poderá atendê-la, dentro da lei”, finaliza.

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