sábado, agosto 02, 2008

Reforma Ortográfica

Artigo
Quando reduzir não é simplificar: reflexão sobre a reforma ortográfica

Prof. Dr. Luiz Carlos Schwindt* O Brasil se prepara para implementar uma reforma ortográfica, fruto de um acordo entre países de língua portuguesa. Nascido na década de 90 e revigorado nos últimos anos, o projeto prevê a unificação da escrita nos oito países que fazem parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Portugal, que se mostrava resistente nesta última fase, assinou recentemente o documento, sob acalorada discussão - já que a Reforma afeta de forma mais significativa a variedade lusitana do português do que a brasileira. Apesar disso, não se pode negar que ela tem importantes conseqüências também para os brasileiros.

Pode-se dizer que uma reforma ortográfica, em princípio, norteia-se por pelo menos dois objetivos: o de unificação e o de simplificação. Ainda que se possa criticar, por diversos ângulos, a validade da unificação oriunda da Reforma - seja porque ignora a variabilidade da língua falada, que tem inevitáveis reflexos na escrita, seja porque pode gerar um impacto econômico e político em certa medida desfavorável aos países envolvidos -, não há dúvida de que, oficialmente, com o Acordo, unificam-se as escritas. O aspecto, todavia, que quero problematizar brevemente aqui é a suposta simplificação. Essa questão - que toca diretamente aos lingüistas - foi banalizada, em meu entendimento, na construção desse projeto.

"Simplificar”, em Lingüística, quer dizer bem mais do que “diminuir”. O fato de se abolir um trema aqui, um acento ali não faz da língua escrita necessariamente mais simples. Quando se fala em linguagem, o termo “economia” precisa estar associado a “naturalidade”. Para entender com clareza essa idéia, basta pensarmos nas razões por que usamos um sistema alfabético. Esse sistema nasceu sob uma hipótese de pareamento entre sons e letras. Se tomarmos essa hipótese em isolado, podemos avaliar a eficácia de um sistema ortográfico na medida de sua aproximação com a língua falada. É claro que isso não é tão simples assim. Sabe-se que sistemas gráficos são de natureza estática, enquanto a língua falada é dinâmica, isto é, está sujeita a mudanças a qualquer tempo, independentemente de decisões provindas da boa ou da má vontade política de alguém. Todavia, essas naturezas distintas que individualizam fala e escrita, apesar de serem responsáveis pelo distanciamento entre elas, não afetam a natureza de sua relação, isto é, esses dois sistemas ensejam isomorfismo. Uma reforma – se necessária – deveria trabalhar na esfera dessa tensão.

Por limitações de espaço, vou tomar apenas dois aspectos do Acordo que podem exemplificar bem seu caráter pouco simplificador (para não dizer “complicador”): o fim do trema (lingüiça, que passa a linguiça) e a extinção do acento gráfico dos ditongos abertos em posição medial (retinóico, que passa a retinoico). Em relação ao trema, alguns poderiam dizer que há muito está em desuso em português. Não se considera, entretanto, que ele é responsável ainda por informar a um leitor aprendiz de português (o que vai desde um falante nativo se alfabetizando até um estrangeiro estudando nosso idioma) se o u é ou não pronunciado nas seqüências gu e qu seguidas de e ou i. Em relação aos ditongos abertos, a questão é ainda mais séria. A proposta falha por falta de uniformidade e por negligenciar o aspecto fonético. Perde uniformidade ao determinar a eliminação do acento nas paroxítonas mas sua manutenção em posição final. Assim, herói será acentuado, enquanto heróico não. Falha também por ignorar que o diacrítico em ditongos abertos traduz mais do que tonicidade – ele é, sobretudo para a variedade brasileira do idioma, também um indicativo de timbre, ou seja, as pessoas sabem, a partir dessas marcas, que a pronúncia de é e ó deve ser aberta. Nessa relação de complexificadores, poderíamos ainda citar alguns aspectos referentes às mudanças no uso do hífen e ao tratamento que será dado às palavras com consoantes não-pronunciadas.

Com esses argumentos, não quero imprimir uma postura anti-reformista de base; pelo contrário: entendo que reformas em sistemas estáticos são necessárias, muitas vezes, para acompanhar a evolução dos setores dinâmicos. O fato é que convivemos com um sistema gráfico muito complexo (em oposição, no que se refere à acentuação gráfica, por exemplo, à escrita do inglês). A questão primordial é, pois, atacar o problema, isto é, o único modo de se reduzir complexidade é com uma proposta de simplificação - que leve em conta economia e naturalidade. Isso não enxergo de pleno na reforma proposta.

* Departamento de Lingüística, Filosofia e Teoria Literária - Insituto de Letras

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