domingo, setembro 21, 2008

De Anchieta aos evangélicos

de Aldo Nascimento











No dia 16 de março deste ano, chegou aos meus olhos por R$ 33 o teatro do padre José Anchieta, uma bonita edição da Martins Fontes. Trata-se de Auto de São Lourenço, texto dramático representado em 10 de agosto de 1587, na Capela de São Lourenço, hoje Niterói, no Rio de Janeiro. Debrucei minhas retinas sobre o parapeito de palavras durante dois meses para eu perceber a sedução que Anchieta exerceu sobre os povos tupis e tupinambás. Em pleno século 16, a igreja, em um lugar inóspito, teatralizou seu domínio no adro da igreja.

Profundo estudioso da língua nativa, Anchieta chegou mais tarde, em 1595, a elaborar a Arte de grammatica da lingva mais vsada na costa do Brasil a fim de penetrar na cultura local por meio da própria língua indígena. Em Auto de São Lourenço, o teatro anchietano lança duas variantes dialetais mais usadas no Brasil quinhentista, o tupi e o tupinambá. Aprendemos com esse sacerdote católico que o poder mistura-se com seu oposto para corrompê-lo por dentro. Estar dentro significa, nesse caso, tudo o que a palavra pode representar, por exemplo, a alma de um povo, sua vida.

Se Santo Agostinho condenou o teatro ao inferno em Cidade de Deus, a igreja, por ter duas ou mais faces, usará essa arte para colocar do avesso os valores místicos dos nativos. Couto Magalhães, estudioso da cultura tupi, mostra a nós sua teogonia. Anhanga, deus da caça, protege os animais terrestres contra os índios que quisessem abusar de seu pendor pela caça, destruindo-o inutilmente. Anhanga significa sombra, espírito. A figura com que as tradições o representam é de um veado branco, com olhos de fogo. Todo aquele que persegue um animal que amamenta corre o risco de ver o Anhanga, e sua vista traz febre e, às vezes, a loucura. Esse conhecimento sobre Anhanga, nós podemos ler em Geografia dos mitos brasileiros, de Luís Câmara Cascudo.

Pois bem, em que Anchieta transformou o mito indígena em Auto de São Lourenço? A tradução de xe anhanga moro-pé, segundo o poder sacerdotal, é eu sou um diabo esquentador de gente. Anhanga, portanto, o mal, um diabo.

Quando faleceu em 1597, em Rerityba, no atual estado do Espírito Santo, em 9 de junho, seu corpo foi levado por um cortejo de três mil índios, por cem quilômetros, até Vitória, onde foi sepultado no Colégio dos Jesuítas, hoje o Palácio do Governo.

Após a primeira encenação de Auto de São Lourenço, 421 anos depois, entrei em uma igreja no bairro Aeroporto Velho para assistir a um culto. Com um saber que não se compara ao saber do padre José Anchieta, o pastor pregava de forma rude nas mentes dos fiéis que o daime é coisa do diabo. Dois alunos meus ouviam a palavra. Ouvindo-o, eu tive a impressão de que o intelectual José de Anchieta realizou um trabalho perfeito.

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