A reconstrução da democracia
Com a proposta de uma esquerda
imaginativa e transformadora
Francisco Bosco
(Foto/José Paulo Lacerda)
"O Brasil precisa deixar de ter medo de idéias" - essa frase, dita recentemente pelo atual ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, emite uma verdade tanto sobre o país quanto sobre o ministro. De um lado, ela evoca nossa propensão crônica para a imobilidade, nossa incapacidade de sairmos do atoleiro da cena pré-política, por assim dizer, das denúncias de corrupção, das mais diversas falcatruas, das tramas fisiológicas do legislativo etc. Mas, de outro lado, e é isso o que importa, essa frase tem uma dimensão auto-referente: Mangabeira Unger é um homem de idéias, um pensador audacioso e original, e, ao mesmo tempo, um homem de vocação pública, voltado para a ação.
É fundamental compreender isso a seu respeito, ou seja, que sua "imaginação institucional" destina-se à transformação do real histórico. Ela não é, como querem alguns (que geralmente ou são ignorantes, não o tendo lido, ou agem de má-fé), a obra escapista e delirante de um doidivanas. Só que seu pensamento não se conforma ao "falso critério do realismo político: a proximidade com o existente"; ele se propõe o desafio de imaginar uma ampla reconstrução da democracia, para além dos impasses e do conservadorismo que segundo ele definem a esquerda, hoje, em âmbito mundial. As diretrizes dessa transformação são apresentadas no livro cuja edição brasileira está sendo lançada nesse momento, O que a esquerda deve propor (originalmente escrito em língua inglesa e intitulado What should the left propose?). São algumas das idéias desse livro, e seu sentido geral, que Mangabeira Unger se dispôs a apresentar a CULT, na entrevista que se segue.
CULT - O senhor afirma que "duas concepções de esquerda deveriam lutar", nesse momento histórico, em âmbito mundial, "pela primazia". Uma delas é a que expressa a orientação da social-democracia, que o senhor considera insuficiente, porque resignada a um "conservadorismo institucional", contentando-se com práticas de redistribuição compensatória. A outra, cujas diretrizes o senhor estabelece em seu livro, não se conforma ao "falso critério do realismo político" - a "proximidade com o existente" - e propõe uma ampla "experimentação institucional". Gostaria que o senhor desenvolvesse essa distinção.
Roberto Mangabeira Unger - Há duas concepções filosóficas da esquerda, hoje. A concepção dominante combina uma valorização do objetivo da igualdade com um conservadorismo institucional. Diz ser fiel ao objetivo da igualdade, mas combina essa fidelidade à igualdade com a aceitação das instituições sociais, econômicas e políticas existentes. Por isso um aparente radicalismo da fé igualitária se enquadra dentro do horizonte restrito do mundo estabelecido. Essa concepção filosófica serve para as duas principais formas aparentes da esquerda que existem no mundo hoje. De um lado há uma esquerda recalcitrante e protetora; ela quer cercear o mercado e a globalização, ainda que não tenha alternativa a eles. E quer cerceá-los para proteger os direitos adquiridos de suas bases históricas, que são sobretudo os operários organizados e sediados nos setores intensivos do capital. A outra esquerda aparente no mundo hoje é uma esquerda rendida e humanizadora, que aceita o mercado e a globalização em sua forma atual e tenta humanizá-los por meio de políticas sociais. A mesma concepção filosófica com sua combinação paradoxal de alegado igualitarismo e conservadorismo institucional serve para essas duas esquerdas.
CULT - E o que o senhor propõe?
RMU - Eu proponho uma outra esquerda, uma terceira esquerda, imaginativa e transformadora. Essa outra esquerda insiste em transformar as formas institucionais estabelecidas da economia de mercado, da sociedade civil livre e da democracia política. Ela tem por guia um método e um objetivo. O método é o experimentalismo institucional, colocado no lugar do conservadorismo institucional. É a idéia de que as formas institucionais estabelecidas nos países ricos - nos países que nós brasileiros estamos acostumados a tomar como referência - representam segmentos de um universo muito mais amplo de possibilidades institucionais. E de acordo com esse método, as sociedades contemporâneas só podem resolver seus problemas caminhando no espaço de novas formas de organizar o mercado, a sociedade civil e a democracia. O objetivo que se combina com esse método é o do engrandecimento das pessoas comuns e o da intensificação da vida cotidiana. A desigualdade extrema é inaceitável, mas a luta contra ela é um objetivo acessório, e não o principal; este é soerguer a humanidade e libertá-la. Esse é o contraponto que está no centro da argumentação desse pequeno livro.
CULT - Mas, antes de pedir ao senhor que discorra sobre as diretrizes de seu experimentalismo institucional, devo lhe perguntar: o governo Lula, pelo menos até o presente momento, não se inscreve precisamente no que o senhor define como orientação social-democrata?
RMU - Há uma trajetória em curso. Eu aceitei o convite para participar do governo Lula convencido de que o governo e a nação buscam avançar na direção que defendo. O Brasil é um país que tradicionalmente cresce dentro dos setores favorecidos e internacionalizados de sua economia; esses setores geram riqueza e uma parte pequena dessa riqueza é usada para financiar programas sociais. Agora o presidente, o governo e a nação querem mais do que isso. Querem construir um modelo de desenvolvimento baseado em ampliação de oportunidades econômicas e educativas e em participação popular. Portanto, ancorar a dinâmica de crescimento econômico na democratização das oportunidades para aprender, trabalhar e produzir. Para isso, porém, o Brasil terá de fazer o que não está acostumado a fazer, que é jogar fora o formulário institucional - o formulário recomendado pelas autoridades políticas, econômicas e acadêmicas dos países ricos do Atlântico norte - e colocar-se na vanguarda da inovação institucional do mundo. Essa tarefa está ligada à superação de um grande paradoxo da nossa vida nacional. O atributo mais marcante do Brasil é sua vitalidade: o Brasil fervilha de vida desmesurada, frustrada e dispersa. Hölderlin, o grande poeta alemão, escreveu que quem pensa com mais profundidade ama o que tem mais vida. E por esse critério somos um país amável, mas o Brasil veste uma camisa-de-força de instituições e práticas, inclusive as práticas de ensinar e aprender, que suprime nossa vitalidade e desinstrumentaliza-a. O que eu quero é que o Brasil tire essa camisa-de-força e redefina o arcabouço de suas instituições e suas premissas; todas as iniciativas em que estou engajado têm a ver com essa aspiração. O presidente está apoiando com grande entusiasmo, e, para falar com toda franqueza, eu não sei até onde poderemos chegar, mas a minha determinação é ficar empurrando os limites, testando-os, ampliando-os - e a argumentação desse pequeno livro apresenta o pano de fundo das idéias que inspiram essa minha ação pública.
CULT - Uma das idéias institucionais do senhor é a "democratização da economia de mercado". O senhor afirma que a controvérsia entre um estado mínimo, um estado regulador e um estado dirigista estabelece falsas alternativas, pois o verdadeiro problema está em como criar novos arranjos entre o Estado e a iniciativa privada.
RMU - Uma diretriz dessa parte das minhas idéias é que a economia de mercado pode e deve ser reconstruída na sua forma institucional. Não basta regular a economia de mercado, não basta contrabalançar as desigualdades geradas na economia de mercado, por meio de políticas de redistribuição retrospectiva. Para tornar a economia de mercado mais includente, para dar mais acesso a mais mercados, para mais pessoas, de mais maneiras, é preciso reorganizar as instituições que definem o que é a economia de mercado. E para reorganizá-las é preciso reimaginá-las. Essa reimaginação, essa reconstrução tem um sentido muito tangível no nosso país. A maior força da nossa economia está numa multidão de pequenos empreendimentos, empreendimentos emergentes, que atuam dos dois lados da fronteira entre a economia formal e a informal. É nesse mundo dos empreendimentos emergentes que está a grande maioria dos empregos e a maior parte do nosso produto nacional. Mas esses empreendimentos vivem à míngua do acesso aos instrumentos da produção: o crédito, a tecnologia, as práticas avançadas etc. Se nós conseguíssemos instrumentalizar essa iniciativa que emerge de baixo, essa iniciativa descentralizada, desobediente e teimosa, nós criaríamos o que o país mais quer, que é um dínamo de crescimento econômico includente. Entre minhas preocupações no governo Lula estão alguns projetos de construção nacional ligados a esse objetivo. Uma política industrial voltada para esse mundo, e não apenas para meia dúzia de grandes empresas; uma política agrícola que comece a superar o contraste entre a grande agricultura empresarial e a pequena agricultura social e familiar; e um novo modelo de relações entre o trabalho e o capital calcado nos interesses da maioria excluída e desorganizada: a metade da população economicamente ativa do país, que trabalha na economia informal, e a parte crescente de trabalhadores na economia formal que se encontra em situações de trabalho temporário, terceirizado e não-assalariado. Essas preocupações, expressas nesses três projetos de construção nacional, estão ligadas a uma das diretrizes de proposta programática nas doutrinas que defendo e que explico nesse livro.
CULT - Que diretriz é essa?
RMU - Há um novo conjunto de práticas vanguardistas e experimentais que começam a revolucionar o mundo. Uma nova maneira de produzir, inovando de tal maneira que as boas empresas cada vez mais se assemelham às boas escolas. O problema é que esse conjunto de práticas experimentalistas ameaça ficar encastelado em vanguardas isoladas do resto da sociedade, e nós queremos disseminá-las, queremos criar esses instrumentos que soergam a pequena iniciativa empreendedora emergente.
CULT - E como fazê-lo?
RMU - Essa obra passa por duas grandes etapas de construção institucional, no Brasil e em todo o mundo. A primeira etapa é ampliar o repertório de formas institucionais de coordenação estratégica entre o Estado e o produtor privado. Não bastam os modelos existentes no mundo, que são de um lado o modelo norte-americano (um Estado que apenas regula as empresas a distância) e de outro lado o modelo do nordeste asiático (um Estado que, por meio de um aparato burocrático, formula uma política industrial e comercial unitária e a impõe de cima para baixo). Nós precisamos de um terceiro modelo: o de uma coordenação estratégica descentralizada, pluralista, participativa e experimental entre o poder público e a iniciativa privada. Essa primeira etapa seria seguida por uma segunda. Dessas relações variadas entre o poder público e a iniciativa privada nasceriam, numa segunda fase, regimes alternativos de propriedade privada e social que passariam a coexistir experimentalmente dentro da mesma economia de mercado. Quer dizer, a economia de mercado, para tornar-se includente, não precisa e não deve assumir uma única forma institucional. Ela pode e precisa assumir formas institucionais múltiplas. Do ponto de vista do pensamento econômico essa construção institucional significa uma radicalização do conceito tradicional de racionalidade econômica. O conceito tradicional de racionalidade econômica é liberdade para combinar fatores de produção; o que se trata aqui é liberdade para combinar os elementos institucionais que organizam as relações de produção e troca.
sábado, setembro 13, 2008
Roberto Mangabeira Unger
Se você aprecia um bom prato, estão à mesa as palavras deste intelectual brasileiro. Sinta com teus olhos o sabor desta inteligência. Bom apetite!
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Um comentário:
. O que salta aos olhos nesse texto é o imenso desprezo com as leis básicas da "economia de mercado": mais-valia, desumanização, estratificação da sociedade, elitização da política etc. Ora, se numa economia de mercado, mesmo democratizada por meio desse experimentalismo institucional, o Estado passa a ser protagonista de ações de desenvolvimento do próprio capitalismo, segue-se então que o moinho da produção econômica só vai passar a mover-se de forma mais ampla.
. A preocupação aqui parece ser com o trabalho sub-assalariado ou informal ou que gera o maior número de empregos no país. As ações que o Mangabeira cita são para permitir, em tese, maior acesso desse segmento da população à renda e ao desenvolvimento econômico.
. PORÉM...
. Mangabeira supervaloriza demais o protagonismo estatal! Conversando com petistas temos a nítida impressão de que o governo "não pode fazer mais porque a conjuntura nacional é capitalista", mas agora vemos o motivo: o governo simplesmente se coloca na posição de protagonista não só do "desenvolvimento político", mas do "desenvolvimento econômico que permitirá o desenvolvimento político". Trata-se de uma aposta, e pior: é uma aposta sem qualquer resquício de esforço socialista, no sentido de democratizar a participação dos trabalhadores organizados nas instâncias deliberativas de poder.
. Não há aqui qualquer indício de interesse em devolver à sociedade o que é da sociedade: o controle dos modos de produção.
. Ao contrário!
. O que esse protagonismo de Estado em prol da "inclusão social" vai gerar uma acentuação do próprio capitalismo, e, de quebra, vai gerar uma política odiosa de elitização das instâncias de tomada de decisão.
. Aliás, o rebaixamento da política a uma instância necessariamente exclusivista e elitizada já está acontecendo no Acre, vide as declarações do ex-governador Jorge Viana nas inserções do programa eleitoral do Angelim.
. Desde quando a política é o campo da "especialização profissional"? Não era da discussão ampla e coletiva? Não era o espaço do debate, do diálogo, da fala e da escrita?
. Que porra de política apolínea é essa que o PT quer criar?
. Já imagino o tamanho da burocracia necessária para movimentar essa brincadeira toda!!!!! E de como será EXTREMAMENTE difícil a democratização da mesma, que dirá a sua administração pelos trabalhadores organizados!
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