domingo, julho 12, 2009

Espetáculo da depressão



Maria Rita Kehl analisa os imperativos do consumo,
que negam ao sujeito o tempo necessário para se constituir

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Tempo e o Cão - A Atualidade das Depressões", de Maria Rita Kehl, é um livro empolgante. A leitura do trabalho é extremamente agradável, dada a qualidade literária da escrita da autora. Não se engane, entretanto, o leitor. A leveza do que é escrito é inversamente proporcional à densidade do que é dito. As numerosas referências conceituais mobilizadas e as hipóteses sustentadas exigem atenção e tempo para compreender. Portanto, qualquer resenha -inclusive esta- pode apenas fazer reverberar alguns aspectos da riqueza do tema abordado. É pouco, mas é o possível.

Maria Rita retomou o problema da depressão contemporânea pelo viés mais árduo: fazer [Jacques] Lacan dialogar com [Donald] Winnicott -dois herdeiros de Freud supostamente avessos um ao outro- e trazer a cultura para o interior da subjetividade. Como instrumento de análise, uma distinção nosológica e três grandes noções operativas: a distinção entre melancolia e depressão e as noções de gozo, tempo e vazio.

A descrição da melancolia, diz ela, permanece marcada pela tese freudiana da perda do objeto e do ataque ao próprio Eu, identificado em parte com o objeto perdido amado e odiado. Os sintomas melancólicos seriam, de um lado, a expressão da agressão ao Outro internalizado e, de outro, a resposta sintomática ao desinteresse do Outro pelo sujeito.

O fantasiado desinteresse é interpretado como sinal da vacuidade ou nulidade libidinal do indivíduo, donde a contrapartida do desinvestimento no mundo. O correlato cultural dessa organização psíquica seria o ethos da modernidade e da civilização burguesa oitocentista. A partir dos ensaios de Walter Benjamin sobre o barroco e sobre o mundo oitocentista de [Charles] Baudelaire, Maria Rita busca mostrar como a ordem socioeconômica reduplica, no nível simbólico, a vivência de superfluidade melancólica potencialmente inscrita em todos nós.

A depressão contemporânea é outra coisa. O deprimido, nesse caso, não sofre pela omissão do Outro, mas por sua intrusão. O protótipo desse tipo de trauma é a situação da mãe ansiosa ou obsessiva, que afoga o filho em cuidados constantes e excessivos. Como consequência, a criança não pode experimentar a falta -desilusão, na terminologia de Winnicott- que o leva a recriar na fantasia o objeto da carência, condição "sine qua non" da existência de seu desejo.

Assim, onde o desejo deveria advir, surge um arremedo de resistência ao gozo do Outro na forma passiva e reativa do esvaziamento de si. Essa predisposição se repete na etapa edipiana de rivalidade com o pai e redunda no retraimento do sujeito diante da vida pública ou privada. A montagem depressiva, assim, tem como premissa a onipresença do gozo do Outro, que sonega ao sujeito o tempo necessário à substituição metafórica ou metonímica do objeto ausente.

Tempo angustianteDe forma breve, faltou desilusão no passado; sobra desesperança no presente. Sem tempo para desejar, o sujeito se rende à louca injunção do supereu lacaniano: "Goza! Não goza!". Goza para não desejar; não goza para que o Outro goze. Essa é a alavanca que Maria Rita aciona para passar do registro pessoal ao registro cultural, pois os filhos do Outro invasivo são a versão psicanalítica do que [o pensador e cineasta francês] Guy Debord chamou de "filhos do espetáculo".

Na sociedade do espetáculo, o Outro da publicidade também assedia o sujeito com imagens da felicidade do consumo, sem deixar-lhe tempo para elaborar as perdas ou fruir os ganhos da vida. Mães atribuladas, pais privados de autoridade simbólica, sujeitos mesmerizados pelas promessas do estilo de vida drogado, todos vivem angustiadamente correndo contra o tempo ou paralisados na atemporalidade da depressão.

Em suma e em bom português, o tempo depressivo do espetáculo é, verdadeiramente, um tempo de cão. Como o tempo do filme "Corra, Lola, Corra" ou o de Jack Bauer [herói de série televisiva americana] e suas 24 horas. Contra isso, lembra Maria Rita, tempo é memória; memória é desejo e desejo é sujeito. Nem derrotista, nem ufanista, ela afirma que recobrar o direito ao tempo é restaurar a dignidade do desejo e a alegria de sentir que a vida vale a pena ser vivida. Pode-se pedir mais de uma psicanalista?

JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "História da Psiquiatria no Brasil" (ed. Garamond), entre outros livros.

O TEMPO E O CÃO
Autora: Maria Rita Kehl
Editora: Boitempo (tel. 0/xx/11/3875-7250)
Quanto: R$ 39 (304 págs.)

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