sábado, março 16, 2013

A palavra na Grécia Antiga

Estava de bobeira olhando as páginas de "As origens do pensamento grego", de Vermont, e revolvi deixar a seus olhos um resumo subjetivo a respeito.

Não acredito em cultura erudita em blogues ou em redes sociais, mas faço isso porque me acostumei a ser inútil.

Boa leitura!


Do livro “As Origens do Pensamento Grego”, de Jean-Pierre Vernant

Capítulo IV: O Universo Espiritual da Polis

Resumo subjetivo de Aldo Antônio Tavares do Nascimento

Entre os séculos VIII e VII, emerge na Grécia uma invenção que tomará nova forma: a palavra. Segundo Jean-Pierre Vernant, “torna-se instrumento político por excelência”. Por meio dela, domina-se; exerce-se comando sobre o outro pela força da persuasão (peithó). As relações entre os indivíduos, as relações sociais, não serão, portanto, as mesmas quando nos séculos V e IV essa invenção chega a seu auge.

Oposta à palavra do rei divino – refiro-me ao período da civilização palaciana ou da sociedade despótica -, a palavra na polis, sem o propósito de ser absoluta, possui a marca do discordante, da instabilidade, da irregularidade, ou seja, ela se encontra agora na arena do debate contraditório, em ágora. Na pólis, porque se apresenta dessacralizada a serviço da arte oratória, a palavra é discussão diante do público.

Todas as questões de interesse público deverão ser solucionadas pelos discursos entre oponentes, sendo o logos, na forma de retórica, que regula essas argumentações.
Assim, na sociedade jurídico-política ou na sociedade democrática, não há mais espaço para a palavra privada, segredada conforme o sagrado, mas tão somente para o espaço público. Isso significa que, por ser emitida aos olhos de todos, perdendo, portanto, sua função sagrada, a palavra, agora no espaço aberto, no espaço de ágora, perde sua hierarquia para se tornar comum ou democrática.

No lugar do verbo do sacerdote ou do monarca, a autoridade da lei determina que a palavra deverá ser igual para todos, da mesma maneira, sem distinção. Acima de todos, a universalidade comum da Lei, devendo, por todos, ser aceita e reconhecida.

Vindo o termo “sagrado” do verbo “separar”, a palavra na sociedade democrática, uma vez dessacralizada, não se põe à parte do que é comum a todos, não mais permanecendo preservada, guardada ou afastada do que é comum ao “poder do povo” (democracia). Assim, rompida a distância entre o sagrado e o ordinário, entre o divino e os mortais, entre o sacerdote e os fiéis e entre o rei e os súditos, o diálogo entre iguais nega a hierarquia da sociedade despótica. A fala instável dos homens em ágora, também fala enganosa, nega a fala estável do sacerdote no templo e a do monarca no palácio. A palavra torna-se isto: política, ou seja: ela deve ser comum a todos na cidade. Por ser pública, por ser política, ela, a palavra, é doxa.

Isso, entretanto, não significa a sua existência absoluta. Única. Quero afirmar que a palavra do longo período da civilização palaciana não chegou a seu fim. Ela não morreu. “O processo de divulgação faz-se por etapas”, afirma Vernant. Mesmo no plano político, o poder trilha caminhos misteriosos, secretos, sobrenaturais. Embora a Grécia encontre-se no período clássico, relações sociais na polis ainda mantêm o hábito de separar o privado do público. Por causa das necessidades humanas, o sagrado resiste, porque o público, por sua natureza universal, geral, aberta, instável, irregular, promove o distante das vicissitudes da arché ou das origens humanas. O íntimo não só pertence aos homens, mas ele é o humano.

Com efeito, paralelo ao espaço de ágora, seitas, cultos, confrarias, mistérios, enfim, grupos hierarquizados guardam a palavra que doxa não pode sequer ver ou ouvir. Mantido o secreto, escreve Vernant que “uma minoria de eleitos se beneficiará com privilégios inacessíveis ao comum”.

Para esses iniciados, a transformação só pode ser “espiritual”, não podendo caber a ela a dimensão política, porque os eleitos, os epoptas, são puros, santos: “sagrados” – estão “separados” do que é comum à cidade. Todavia, sem restrição de nascimento, sem restrição de classe, a todos que desejam conhecer a iniciação, o mistério oferece aos membros de uma seita a promessa da imortalidade bem aventurada, que era na origem concebido somente ao rei. A palavra sacralizada é publicidade entre eles, aos que pertencem a uma seita, e não mais a uma família. Sua democracia não chega ao espaço aberto de ágora, permanecendo a palavra, portanto, ao círculo da seita, da confraria.

Em ágora, como foi escrito, a palavra é irregularidade. Ora, por não ser reta, por não ser linear, a palavra em ágora é curvilínea, sinuosa, tortuosa, confusa; ela mistura pontos que não estão em uma única ou fixa direção. Posso afirmar com isso que ela está em “desordem”. Entregue, portanto, à mistura, a palavra em ágora tem a marca da impureza. Na condição de instável, a palavra é acessível a todos em ágora, mas o Sábio, quando transmite a verdade à polis, não pode reduzir a palavra somente ao ordinário, ao (des)cobrir o que se encontra sob a aparência. A palavra do Sábio não pode ser “desordem”. Dessa forma, em ágora, ele “entrega ao público um saber que proclama ao mesmo tempo inacessível à maior parte”, observa Jean-Pierre Vernant. Para que a palavra seja a revelação da verdade, para que a palavra seja reta, pura, estável, o Sábio buscará “um
conjunto de práticas e de disciplinas caracterizadas pela austeridade e pelo autocontrole do corpo e do espírito, que acompanham e que fortalecem a especulação teórica em busca da verdade”. Ele seguirá o caminho de ascese, o caminho da “pureza”. Se ele “leva o mistério para a praça pública; faz dele o objeto de um exame, de um estudo, sem deixar entretanto de ser mistério”, como escreve Vernant na página 63, o Sábio é o contradito; e a filosofia, a ambiguidade.

Tínhamos escrito que
peithó (força da persuasão), que não havia na sociedade micênica, palaciana ou despótica, manifesta-se em ágora (espaço público), porque a palavra sacralizada do sacerdote ou do rei divino cederá aos poucos - não por completo - à palavra dessacralizada, à opinião (doxa), que se manifesta na sociedade jurídico-política ou democrática. Como sabemos, no espaço público, todos igualam-se por causa de a palavra ser doxa e, dessa forma, ela é instável, irregular, sinuosa, impura, falha, desordem. Entre o público e o privado, entre a exposição e o segredo, o Sábio é a contradição. No entanto, para que a ideia de iguais (isois) prevaleça na Grécia, os séculos VII e VI serão determinantes, ou seja, aproximadamente cem anos antes da sociedade jurídico-política (século V), germina-se o valor de isonomia não pela força da persuasão (peithó), mas pela força do medo (phóbos).

Lacônico no lugar de diálogo. De Lacedemônia, também dita Lacônia, vem o adjetivo “lacônico” (breve, conciso, sucinto), isto é, oposto ao que busca persuadir, ao que busca a doxa, lacônico é aquele que fala pouco. É possível alguém falar muito diante do medo? No máximo, “o que é isso!?!?”. Depois, o silêncio, ou melhor, o silêncio da obediência.

Em Lacônia, nascem os lacedemônios ou os espartanos. Por meio deles, a noção de iguais forja-se naqueles que estão armados, os hoplitas, só que de forma diferente da aristocracia dos hippeis. Destes, surgiu o herói, o indivíduo separado do todo, porque o que contava era somente a sua façanha, o seu ato em si. Sua superioridade pertencia a ele, à unidade sem o conjunto; e daqueles, o indivíduo obediente a uma disciplina comum por causa de uma forma nova de lutar – a forma de falange. Nessa formação, os guerreiros não possuem lugar fixo, havendo, então, o deslocamento constante de posição. Não há hierarquia, mas a inconstância ou o movimento de ocupar várias posições na falange diante do inimigo. Todos, pois, igualam-se. O conjunto da falange, embora cada unidade não seja fixa, cada guerreiro, para manter o conjunto da ação, não pode ultrapassar seu limite. O conjunto depende da obediência de cada um para que a inconstância das posições seja assegurada. Nessa forma de guerrear, não importa o valor individual, prevalecendo assim a lei do grupo, do todo, do conjunto, da falange. Cada parte é igual à outra, havendo, dessa forma, equilíbrio. Cada homem da falange limita-se a essa lei, e esse temor impõe que todo soldado-cidadão curve-se à obediência.

Por causa dessa forma de lutar, a palavra, segundo aqueles nascidos em Esparta, não tem a necessidade de ser argumentação, discussão, diálogo, enganosa, política, contraditória, errante, mas sentenciosa, definitiva e lacônica. Escreve Vernant na página 72: “É na prática dos combates mais que nas controvérsias de ágora que os hómoioi se exercitam.”                                                   
            

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